Ali entre os mistérios sobre a morte do personagem do Christopher Plummer, “Entre Facas e Segredos” trazia sutis ironias sobre a elite branca norte-americana e seu jeitinho doce de tratar todos que considerava inferiores – até hoje, aqueles sujeitos mal devem saber o país onde nasceu a pobre coitada da personagem da Ana de Armas. Para “Glass Onion”, o diretor e roteirista Rian Johnson escancara a caixinha de ferramentas para ser mais direto na sátira, trocando apenas os trumpistas para os ricaços sem noção metidos a altruístas. 

“Glass Onion” parte de onde os abismos sociais e a irrealidade do mundo dos milionários se tornou mais do que óbvio: a pandemia da Covid-19. Estamos em maio de 2020 e enquanto o mundo se trancava em casa para evitar o colapso do sistema de saúde, um bilionário de uma grande empresa de tecnologia (Edward Norton) convida os best friends para passar um fim de semana em uma ilha grega.  

O grupo chamado Disruptores (palavrinha irritante desta era empreendedora) conta com um Zé Trovão bombadão falando estupidez na Twitch (Dave Bautista), uma dondoca sem nenhuma timidez para soltar preconceitos (Kate Hudson, linda de morrer), uma candidata ao Senado e um cientista vendidos (Kathryn Hahn e Leslie Odom Jr, respectivamente) e a atual desafeto da turma (Janelle Monáe, disparada a melhor do grande elenco). No meio disso, lá está o maior detetive do mundo, Benoit Blanc (Daniel Craig), prestes a resolver um mistério. 

SEM MEIAS-PALAVRAS 

Com esta trupe capaz de pagar R$ 9 mil por um pedaço de carne somente como entrada, Rian Johnson utiliza a primeira hora de “Glass Onion” para fazer uma comédia sobre esta festa estranha de gente esquisita. E que comédia, caro leitor: no melhor estilo rindo para não chorar, somos lembrados de como esta gente acima do bem e do mal pode ignorar os alertas públicos para suas festas, fingir usar máscaras, propagar publicamente homofobia e racismo, andar armado por ir sem ser incomodado. 

Tal qual os guias espirituais de antigamente, os ‘jênios’ modernos com frases feitas e termos que nada dizem dão os mandamentos, ou melhor, disrupções para os mimados seguirem cometendo atrocidades. Johnson, entretanto, subverte este endeusamento aos Elons Muskies da vida ao mostrar a fragilidade argumentativa e a surrealidade do mundo desta gente.  

Nisso “Glass Onion” opta por ser sem meias-palavras como no sermão de Craig a Hudson sobre o perigo de falar o que se pensa travestido de uma falsa verdade (oi Monark!), no barulho bizarro das horas ou no carro suspenso sem a menor necessidade.  

PEÇAS SE ENCAIXANDO PERFEITAMENTE 

Aquele universo deliciosamente bizarro de figuras revoltantes acaba sim por deixar o mistério de “Glass Onion” em segundo plano e o próprio Blanc, no momento derradeiro da trama, chega a admitir quão bobo tudo aquilo ressoa. Agora, se a mea-culpa do Johnson roteirista faz sentido por certos atalhos clássicos deste tipo de filme (o flashback e a virada envolvendo uma certa personagem são até preguiçosos) e pela previsibilidade dos acontecimentos, o Johnson diretor não pode dizer o mesmo.  

Afinal, como todo bom diretor do gênero sabe, o fluxo de informações em um suspense é vital para envolver o público na história que você conta. Em “Glass Onion”, Johnson brilha em um jogo de revelar gradualmente cada detalhe do quebra-cabeça sem deixar perdido quem acompanha. Ver as peças se encaixando no enorme tabuleiro se torna um verdadeiro prazer em um trabalho excelente do próprio Johnson em parceria com Ram Bergman.  

“Glass Onion” pode até não superar “Entre Facas e Segredos” no equilíbrio entre suspense e sátira, mas, atinge pontos mais altos na acidez e ironia que propõe. De qualquer modo, abre definitivamente o leque da série “Knives Out” para ir além do whodunit que se espera dela, servindo como um olhar crítico e bem-humorado dos nossos tempos.