“One day, when the glory comes,

It will be ours, it will be ours…”

A canção de John Legend e Common vencedora do Oscar pelo filme “Selma”, ressoava na cabeça ao longo de “Till – A Busca Por Justiça”. Ressoava pelo sentimento de liberdade, pela angústia da existência e pelo medo imposto na existência dos negros na sociedade. A música estava tão alta na cabeça que deu certa vertigem.

Sabemos que a glória da verdadeira liberdade aos negros nunca existiu. A luta por igualdade, equidade, justiça e direitos aos negros acontece de uma forma muito desesperadora. Explico: ao que parece, os anos que se passaram entre 1955 e 2022 não houve uma evolução de fato e uma preocupação em reparar os danos causados para a população negra ante ao sistema racista e negacionista de suas conquistas e direitos.

Emmett Till era apenas uma criança de 14 anos que, ao viajar de férias de Chicago para o Mississippi para passar uns dias com os primos, foi brutalmente assassinado por dois homens brancos por, supostamente, ter assediado a esposa de um deles. Catorze anos. George Floyd foi brutalmente assassinado por um policial em dia claro, com testemunhas e vídeos em 2020! O desespero, aqui, é nesse sentido, somente se movimentam ou fingem movimentar-se quando barbaridades como estas ganham notoriedade. E não são pontuais. Casos assim, no Brasil e nos EUA, são constantes e normatizados.

IMPUNIDADE HISTÓRICA

Com seu único filho morto e desfigurado, Mamie Till, no auge de sua dor e desolação, resolve fazer um funeral com o caixão aberto, para todos verem a violência que aquele menino passou. As fotos ainda no necrotério e caixão ganharam as manchetes. Muitos contra, outros a favor, mas o recado foi dado: vejam o que o sistema racista fez com meu filho, ele não era um qualquer e, mesmo que fosse, haverá luta.

Infelizmente a justiça americana do Mississippi não se compadeceu com o clamor público e os assassinos foram inocentados. Menos de um ano depois, foram pagos para dar uma entrevista para uma revista em que assumiam a culpa pelo crime brutal. Nunca foram presos.

Emmett Till não foi o único e não foi o último a ser vítima do linchamento racial nos EUA. Mas foi um dos casos que deu publicidade aos Direitos Civis que tanto a população negra necessitava, pois a segregação racial ainda imperava naquela década de 1950.

SIMBOLISMOS E VIOLÊNCIAS

A preocupação da diretora Chinonye Chukwu não é apresentar uma resolução do caso, mas narrar os acontecimentos antes e depois da execução de Emmett (Jalyn Hall). A narrativa funciona nesse sentido de não construir um filme de frases de efeito e transformar a história em mais um circo midiático. Há muita sensibilidade em sua construção, mesmo que se arraste em um momento – senti falta da veemência da importância de Mamie Till (Danielle Deadwyller) no front dos Direitos Civis, ainda que todos os simbolismos e violências estejam lá explicitamente:

  • A palavra. Negros foram sempre questionados. Sua palavra não tinha valor igualmente a palavra de uma pessoa branca.
  • Era preciso desestabilizar e desacreditar o caso e mãe e filho. Desde que fora algo inventado, até questionar seu estado civil, social, trabalhista e lhe questionar como mãe.
  • A Lei Jim Crow. Legitimamente segregada. Compunha os modos como negros deveriam se comportar perante uma pessoa branca. E se, algum deles se sentisse ofendidos, a lei lhes aparava resultando em uma série de linchamentos, prisões e mortes.
  • Violência. A brutalidade não é somente física, mas psicológica. Sejam os brancos no julgamento transitando livremente, enquanto os negros são revistados, inclusive a própria mãe da vítima, escancarando o racismo, seja pelo ar debochado do juiz e o júri majoritariamente de homens brancos de meia idade e bebedouro que separa os brancos das “pessoas de cor”.

À ESPERA DA GLÓRIA

A força cênica de Danielle Deadwyler é o que eleva “Till” ao espetáculo. Uma performance tão desesperada tanto contida. Uma mulher preta, contra metade branca da população que não teve o direito ao luto, teve que ir à luta para provar a dignidade do filho, de sua vida e buscar justiça. Uma construção arrebatadora, sofrida, elegante e que movimenta a trama, sem dúvidas a verdadeira Mamie, falecida em 2003, ficaria orgulhosa.

Há duas cenas em particular que merecem menção. A primeira é a fala do Diretor da ANPPC, Roy Wilkins: “fizeram isso raptando um garoto de 14 anos. Os assassinos sentiram-se à vontade para lincha-lo porque não há um lugar algum do estado uma influência que comporte a decência”, em outras palavras, a vidas negras sempre foi banalizada, o crime de ódio da supremacia branca, ao que parece, ainda é legalizado.

E isso nos leva a outra cena fantástica de Mamie com outra mulher negra falando de medo. Mamie diz que criou seu filho para ser um menino, uma boa pessoa, desenvolto, como ele realmente era não para temer por ser quem era. E esse é um ponto fundamental: o racismo também se cria no medo. Negros não devem ter medo se existir. Crescer no medo não deveria ser opção para ninguém.

A Lei anti-linchamento, que tem como base o Ato Emmett Till, foi assinada pelo presidente Joe Biden em março de 2022. Emmett Till foi brutalmente assassinado em 1955. Preciso falar mais alguma coisa?

Recentemente, Carolyn Bryant assumiu que mentiu em depoimento que Emmet nunca fizera nada com ela. Ela ainda segue viva com quase cem anos sem nunca ter sido indiciada.

E “Glory” continua tocando alto na cabeça: um dia a glória realmente chegará?