Um docudrama que explora a autoficção até às últimas consequências, “Miguel’s War” é uma revelação. Com estilo de sobra e uma abordagem corajosa, o longa da cineasta libanesa Eliane Raheb foi um dos melhores do Festival de Berlim deste ano, onde foi exibido como parte da mostra Panorama. O filme tem tudo para fazer sucesso em festivais de temáticas LGBTQ, mas sua potente história o faz necessário para muito além dessa audiência. 
 
O Miguel do título é Michel Jelelaty, intérprete e tradutor libanês que Raheb conheceu na Espanha durante a divulgação de seu último filme. Homossexual buscando escapar da intolerância de seu país, bem como da guerra que o assolava, ele foge para a Espanha pós-franquista, onde se reinventa como Miguel Alonso e se joga numa vida de excessos almodavarianos. O passado, no entanto, se recusa a ficar para trás e o encontro com a diretora lhe dá a chance de revisitá-lo. 
 
A obra de Raheb é bastante focada na Guerra do Líbano – um conflito devastador ocorrido entre 1975 e 1990 que inspira muito do cinema atualmente feito por seus conterrâneos. Através de Miguel, no entanto, ela encontra uma forma de colocá-la como pano de fundo e explorar a capacidade de alguém de inventar uma nova vida para si em meio a ela – bem como o custo disso.

ATRITO DE VERSÕES

A realidade multifacetada de uma história como a de Miguel encontra uma realização arrojada que faz uso de diversos elementos. Raheb inclui animações, colagens, gravuras, montagens e reencenações para fazer a vida dupla de Miguel surgir pulsante em cena. A diretora aparece em cena guiando “Miguel’s War” junto com seu personagem, abraçando suas falhas, mas, confrontando seus relatos. 
 
Ao se reinventar como Miguel, Michel confessa que almeja apagar toda a sua vida pregressa e tudo que o ligava ao Líbano. Quando ele regressa ao país pela primeira vez em décadas, a câmera de Raheb é certeira ao mostrar que, para o bem ou para o mal, certas coisas permanecem dentro das pessoas para sempre – um tema que percorre todo o filme. 
 
Miguel – engraçado, inteligente e com mais de 50 anos muito bem vividos nas costas – é um dos grandes narradores não confiáveis do cinema recente. Várias de suas afirmações são postas em cheque por Raheb, várias de suas memórias beiram a invenção. Ele exagera em pontos e esconde em outros, em plena consciência – e exercício – da edição de sua própria vida. De certa forma, ele parecia já estar vivendo seu filme muito antes da cineasta entrar em sua vida. 
 
É nesse atrito de versões que “Miguel’s War” encontra seu material mais rico. Através dele, é como se o público assiste em tempo real alguém que passou boa parte da vida se anulando e odiando revertendo o processo e procurando se encontrar. Há muita tentativa e erro nessa busca – algo que a produção não faz nenhuma questão de esconder – mas também há uma beleza inerente nela. 

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...

‘Instinto Materno”: thriller sem brilho joga no seguro

Enquanto a projeção de “Instinto Materno” se desenrolava na sessão de 21h25 de uma segunda-feira na Tijuca, a mente se esforçava para lembrar da trama de “Uma Família Feliz”, visto há menos de sete dias. Os detalhes das reviravoltas rocambolescas já ficaram para trás....

‘Caminhos Tortos’: o cinema pós-Podres de Ricos

Cravar que momento x ou y foi divisor de águas na história do cinema parece um convite à hipérbole. Quando esse acontecimento tem menos de uma década, soa precoce demais. Mas talvez não seja um exagero dizer que Podres de Ricos (2018), de Jon M. Chu, mudou alguma...

‘Saudosa Maloca’: divertida crônica social sobre um artista boêmio

Não deixa de ser interessante que neste início da sua carreira como diretor, Pedro Serrano tenha estabelecido um forte laço afetivo com o icônico sambista paulista, Adoniram Barbosa. Afinal, o sambista deixou a sua marca no samba nacional dos anos 1950 e 1960 ao...

‘Godzilla e Kong – O Novo Império’: clima de fim de feira em filme nada inspirado

No momento em que escrevo esta crítica, caro leitor, ainda não consegui ver Godzilla Minus One, a produção japonesa recente com o monstro mais icônico do cinema, que foi aclamada e até ganhou o Oscar de efeitos visuais. Mas assisti a este Godzilla e Kong: O Novo...

‘Uma Família Feliz’: suspense à procura de ideias firmes

José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – "As Verdades", ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar.  A trama de "Uma Família Feliz" – dolorosamente óbvio na ironia do seu título –...