O live-action de ‘Mulan’, sem dúvida, foi uma das estreias mais afetadas pela pandemia da Covid-19: semanas antes de seu lançamento em março, os cinemas ao redor do mundo foram paralisados, incluindo a China, primeiro epicentro da doença. Além do filme tratar justamente sobre a cultura chinesa, a Disney, juntamente da diretora Niki Caro, focou seus esforços em apresentar uma representação condizente da história desde a escalação do elenco aos costumes locai e referências culturais. Tudo isso seria muito melhor aproveitado caso as adaptações realizadas fossem efetivas para a trama e, esta, por sua vez, conseguisse sustentar a emoção e a jornada particular da protagonista. 

Mulan” passa por dificuldades ao adaptar personagens e elementos decisivos para a história. Apesar do base ser a mesma da animação de 1998, na live-action, o grande foco é Mulan (Yifei Liu) e a evolução do “chi” (expressão referente à força interior). Assim, a trama mostra a personagem desenvolvendo suas habilidades enquanto finge ser um homem do exército chinês. Para isto, tanto um auxílio espiritual familiar quanto o enfrentamento pessoal com a bruxa Xianniang (Li Gong) são os principais motivadores da protagonista. 

Diferente do live-action ‘O Rei Leão’, é possível perceber que a história de ‘Mulan’ busca se distanciar bastante da animação substituindo elementos. A ausência mais contestada pelos fãs é do dragão Mushu, trocado pela simbologia da fênix. Toda essa parte espiritual, apesar de possuir um conceito explícito, é muito simples para suprir um personagem que tinha falas e influenciava diretamente na trama. 

Da mesma forma, a bruxa Xianniang é utilizada como influência no crescimento pessoal de Mulan como alguém que entende seus conflitos. Entretanto, suas aparições são praticamente uma forma de preencher lacunas na história. Mesmo com Li Gong dando vida à personagem, sua história é extremamente linear e termina de forma óbvia e mal aproveitada. 

E O QUE DEU CERTO? 

Apesar de poucos, há de se louvar os pontos positivos da nova versão de “Mulan”. A escalação do elenco, por exemplo, é um deles: Yifei Liu não deixa a protagonista ser apagada pelas fragilidades do roteiro com muito carisma em cena. Sua dinâmica em conflito com outros personagens sempre cria momentos simbólicos para a narrativa, principalmente com Li Gong, um dos nomes mais famosos (e com razão) do cinema chinês, marcada por papéis em ‘Memórias de Uma Gueixa’ e ‘A Maldição da Flor Dourada’. 

Sabendo das críticas ao whitewashing em produções hollywoodianas, a Disney se preocupou em escalar um elenco chinês para a adaptação – o que parece óbvio até pelas lembranças desastrosas de ‘A Vigilante do Amanhã’ e ‘Death Note’. Para além disso, a diretora Niki Caro ousa em basear as cenas de luta no gênero wuxia, o qual mistura ação com fantasia, rendendo flechas desviadas com chutes e movimentos estendidos no ar. Mesmo causando uma estranheza inicial, a escolha por esse elemento, além de dar maior autenticidade para a trama, também consegue aproveitar ao máximo as longas sequências de luta sem que se tornem cansativas. 

É claro que se tratando de um filme da Disney, o visual continua impecável. Nesse aspecto é realmente incrível comparar como os detalhes visuais da animação foram adaptados de forma realística. Desde cenários e penteados, mas, principalmente, os figurinos possuem uma importância muito grande em retratar o período histórico com uma delicadeza que se mantém seja na maquiagem da Mulan, seja na armadura do exército. 

FEMINISMO AQUÉM 

Como foi dito, “Mulan” possui sim bons atributos, como sua história original, por exemplo. Antes de falar sobre exército, luta e honra, ‘Mulan’ deveria primordialmente ser sobre uma personagem na busca de proteger e orgulhar sua família, uma narrativa facilmente identificável com o público. Todos os momentos de crescimento pessoal de Mulan são acompanhados de outras pessoas, resolvidos com um diálogo rápido, o que poderia ser uma constante construção baseada em si própria e não somente na aparição de um animal mitológico. 

E é claro que, se tratando de uma protagonista feminina, o filme poderia ir muito além nesta narrativa. Perto de princesas da Disney como Ariel e Aurora, Mulan é considerada uma feminista, logo, o filme seria a oportunidade perfeita para debater temáticas como machismo, papel da mulher e direitos femininos. Na recente live-action ‘Aladdin’, Jasmine obteve grandes reparações e destaque para a personagem, algo que poderia ter sido pensado para Mulan, afinal. Assim, mesmo dentro dos padrões frágeis de girl power da Disney, essa a narrativa poderia ter sido mais aprofundada, pois, até existem iniciativas na história, mas todas são restritas a cenas de humor ou romance. 

Como qualquer outra produção da Disney, o live-action tenta agradar seu espectador, assim, ele não arrisca totalmente no humor, ação ou drama, tentando de maneira fracassada ser a perfeita harmonia entre gêneros. Esse equilíbrio, entretanto, pode ser bem tedioso quando existe uma história rica culturalmente e temáticas igualmente grandiosas para serem vistas. Mas, não vamos desanimar, afinal, ainda existem muitas outras princesas esperando seu live-action… 

CRÍTICA | ‘Deadpool & Wolverine’: filme careta fingindo ser ousado

Assistir “Deadpool & Wolverine” me fez lembrar da minha bisavó. Convivi com Dona Leontina, nascida no início do século XX antes mesmo do naufrágio do Titanic, até os meus 12, 13 anos. Minha brincadeira preferida com ela era soltar um sonoro palavrão do nada....

CRÍTICA | ‘O Sequestro do Papa’: monotonia domina história chocante da Igreja Católica

Marco Bellochio sempre foi um diretor de uma nota só. Isso não é necessariamente um problema, como Tom Jobim já nos ensinou. Pegue “O Monstro na Primeira Página”, de 1972, por exemplo: acusar o diretor de ser maniqueísta no seu modo de condenar as táticas...

CRÍTICA | ‘A Filha do Pescador’: a dura travessia pela reconexão dos afetos

Quanto vale o preço de um perdão, aceitação e redescoberta? Para Edgar De Luque Jácome bastam apenas 80 minutos. Estreando na direção, o colombiano submerge na relação entre pai e filha, preconceitos e destemperança em “A Filha do Pescador”. Totalmente ilhado no seu...

CRÍTICA | ‘Tudo em Família’: é ruim, mas, é bom

Adoro esse ofício de “crítico”, coloco em aspas porque me parece algo muito pomposo, quase elitista e não gosto de estar nesta posição. Encaro como um trabalho prazeroso, apesar das bombas que somos obrigados a ver e tentar elaborar algo que se aproveite. Em alguns...

CRÍTICA | ‘Megalópolis’: no cinema de Coppola, o fim é apenas um detalhe

Se ser artista é contrariar o tempo, quem melhor para falar sobre isso do que Francis Ford Coppola? É tentador não jogar a palavra “megalomaníaco” em um texto sobre "Megalópolis". Sim, é uma aliteração irresistível, mas que não arranha nem a superfície da reflexão de...

CRÍTICA | ‘Twisters’: senso de perigo cresce em sequência superior ao original

Quando, logo na primeira cena, um tornado começa a matar, um a um, a equipe de adolescentes metidos a cientistas comandada por Kate (Daisy Edgar-Jones) como um vilão de filme slasher, fica claro que estamos diante de algo diferente do “Twister” de 1996. Leia-se: um...

CRÍTICA | ‘In a Violent Nature’: tentativa (quase) boa de desconstrução do Slasher

O slasher é um dos subgêneros mais fáceis de se identificar dentro do cinema de terror. Caracterizado por um assassino geralmente mascarado que persegue e mata suas vítimas, frequentemente adolescentes ou jovens adultos, esses filmes seguem uma fórmula bem definida....

CRÍTICA | ‘MaXXXine’: mais estilo que substância

A atriz Mia Goth e o diretor Ti West estabeleceram uma daquelas parcerias especiais e incríveis do cinema quando fizeram X: A Marca da Morte (2021): o que era para ser um terror despretensioso que homenagearia o cinema slasher e também o seu primo mal visto, o pornô,...

CRÍTICA | ‘Salão de baile’: documentário enciclopédico sobre Ballroom transcende padrão pelo conteúdo

Documentários tradicionais e que se fazem de entrevistas alternadas com imagens de arquivo ou de preenchimento sobre o tema normalmente resultam em experiências repetitivas, monótonas e desinteressantes. Mas como a regra principal do cinema é: não tem regra. Salão de...

CRÍTICA | ‘Geração Ciborgue’ e a desconexão social de uma geração

Kai cria um implante externo na têmpora que permite, por vibrações e por uma conexão a sensores de órbita, “ouvir” cada raio cósmico e tempestade solar que atinge o planeta Terra. Ao seu lado, outros tem aparatos similares que permitem a conversão de cor em som. De...