Podemos lembrar de 2022 como o ano de Pinóquio. Tivemos uma versão em live action e, agora, chega na Netflix o olhar de Guilhermo Del Toro e Mark Gustafson para a história criada por Carlo Collodi. Utilizando a técnica de stop-motion, os diretores buscam expandir a popular narrativa mergulhando em sua vibe mágica e resgatando elementos complementares e contemporâneos para o clássico italiano. 

Quem é o Pinóquio de Del Toro?

Acompanhamos a trajetória de três personagens bem pontuados: Geppeto, Pinóquio e a Itália de Mussolini. Em vez de centrar-se unicamente no boneco travesso e mentiroso, há um cuidado em pavimentar seu núcleo familiar e as motivações que os envolvem. O carpinteiro, que moldou o boneco de pinhão, deixa de ser um homem que sonha em ser pai para ser um pai que perdeu seu filho de maneira trágica para a guerra. A nova camada dada a ele emociona e aprofunda a relação com Pinóquio e o mundo a sua volta, sendo fundamental para discutir um dos temas principais da narrativa: a relação pai e filho. 

Quanto a Pinóquio, devo dizer que é a primeira vez que vejo o boneco realmente com a mentalidade de uma criança. Ele transpira inocência, por isso é facilmente influenciável e chato. O mundo é algo novo, imenso que ele quer explorar, tocar, saber do que se trata sem filtros e os cuidados que tantas vezes impomos as crianças conforme amadurecem. Sua busca e paixão por conhecer o mundo é tão forte e vibrante que chega a ser cansativa. 

Destaco a Itália de Mussolini, ainda, como um dos personagens centrais, tendo em vista os coadjuvantes que rondam Geppeto e Pinóquio e a relação com o fascismo. Este é um filme político e os atos de cada personagem que aparecem na tela denunciam elementos da Itália de 1922 a 1945, o auge do regime de Mussolini. A partir disso, conseguimos delinear as três temáticas que mais se adensam na produção. 

Temas contemporâneos vividos em uma Itália fascista

Conforme a jornada de inocência de Pinóquio e sua descoberta do mundo se desenvolve, algumas discussões se tornam mais potentes e tangíveis como a relação paternal, a guerra e o luto. Os três temas estão interligados e se apresentam de formas diferentes ao longo da projeção.

A história de Geppeto e Carlo, por exemplo, é um vislumbre e a motivação do seu envolvimento com o boneco de madeira, ao mesmo tempo em que reflete sobre pais que velam seus filhos precocemente. A relação entre os três personagens carrega outro ponto interessante: a remodelagem dos relacionamentos, como buscamos espelhar em outros sujeitos sentimentos, situações e afetos que vivenciamos com terceiros. Disso provém ainda a relutância do carpinteiro em aceitar Pinóquio no primeiro momento e enxergá-lo como indivíduo/filho. 

Abre eco ainda para outra discussão que encontra espaço na própria guerra e as gerações que foram perdidas para os regimes totalitários, seja na escolha de servir tal política, como o faz Pinóquio em determinado momento, ou as vítimas diretas e indiretas que o confronto bélico produz. O resultado é a solidão familiar e a perda de uma geração, como o filme é eficaz em captar e traduzir narrativamente. 

Esses dois pontos resvalam na, provavelmente, questão mais aprofundada na narrativa de Del Toro e Gustafsan – ainda que seja abordada de forma superficial: a morte. É curioso que esta seja a versão do conto que melhor lide com a existência de um boneco de madeira que tem vida e se arrisca a viver perigosamente, como dizíamos mais novos. Desta forma, os roteiristas se aproximam um pouco mais da história original, mesmo que deem um toque pós-moderno que incrementa o debate sobre perdas, partidas e formas de lidar com o luto. O que é extremamente relevante e bom, considerando que a animação se volta, de certa maneira, ao público infanto-juvenil. O roteiristas não tem medo de mostrar a morte, falar sobre ela e nos emocionar ao sentirmos a dor dos personagens. 

A escolha de fazer “Pinóquio” como stop-motion é excelente. A animação é fluída, em parte considerando o complemento gráfico, contudo os detalhes nos cenários feitos de massa de modelar e tinta são uma verdadeira obra de arte que pode ser vista e sentida no movimento do oceano, no interior de um monstro marinho e nas veias de uma pessoa de madeira. 

“Pinóquio” tem o melhor de seus dois diretores. A finalização artística de Gustafson, que pode ser conferida em “O Fantástico Sr Raposo” e a estética de fantasia e terror que Del Toro imprime em seus filmes seja um romance como “A Forma da Água” ou na guerra, como visto em “O Labirinto do Fauno”. O fato é que ambos exprimem uma linguagem de horror muito bem feita criando uma ponte entre o conto de Carlo Collodi e as temáticas contemporâneas e, por esse motivo, conquista o público e se torna o melhor Pinóquio visto nos últimos 20 anos.