Gosto de acompanhar o quanto a percepção de Zygmunt Bauman é certeira sobre a sociedade contemporânea. O sociólogo, entre outras coisas, destacava como as mudanças de pensamento se tornaram mais fluídas e, portanto, menos ‘preto no branco’. Jam Komasa, diretor polonês, parece ser um dos realizadores que melhor dialoga com a visão de seu conterrâneo. É notório em suas produções as discussões levantadas sobre a juventude atual e sua visão acerca do comportamento ambivalente e sedento por espaço.

Enquanto em “Corpus Christi”, acompanhamos um jovem que deseja se reintegrar à sociedade por meio da religião, aqui em “Rede de Ódio”, longa-metragem disponível na Netflix, o roteiro de Mateusz Pacewicz vai mais a fundo e evidencia os males da polarização política. Para isso, somos levados a entrar na mente de Tomasz (Maciej Musiałowski), um jovem extremamente inteligente e sagaz, mas, ao mesmo tempo, amoral e corrupto.

A ambivalência do personagem é constante no decorrer da projeção e é o que conduz a narrativa. Somos apresentados a um rapaz que chora quando se sente rejeitado – atitude imposta pela sociedade como feminina – e que tem um sentimento velado por uma moça, o que o motiva a ser um agente do caos. Por conta de suas atitudes, Tomasz incentiva o público a ter os olhos constantemente nele, afinal, suas ações são tão controversas que impossibilita quem o acompanha de supor seus próximos passos.

Prova disso são as interpretações variantes de seu comportamento. Em momentos precisos de “Rede de Ódio”, por exemplo, o vemos chorar. Essa atitude, por mais que soe como uma reação de angústia no primeiro momento, vai assumindo novos significados conforme a trama avança, igual a questão política.

PEQUENAS ARMAS DE ÓDIO

Nesse interím, o ódio e a intolerância, que encontram berço esplêndido na internet, tornam-se os maiores condutores da narrativa. As temáticas que o filme discorre derivam desses dois elementos e expõe uma onda de distúrbios que vem crescendo na última década como as fake news e a intolerância política. A partir disso, vê-se com maior evidência a ambiguidade e, por conseguinte, a dualidade que compõe “Rede de Ódio”. Nada é preto no banco, mas nada é tão cinza a ponto de mitigar a rede de ódio criada pelo protagonista.

É perceptivo, no entanto, que Komasa propõe uma reflexão sobre as estruturas duais que governam a sociedade de forma geral e particular. Há dois exemplos bem presentes na narrativa: os políticos e a dona da agência. Eles demonstram a fragilidade da imagem projetada para o público, evidenciando a ambivalência descrita por Bauman, na qual o homem está sempre indo contra as suas incertezas, embora suas reações confirmem o comportamento a qual tanto querem se desvincular.

Os dois políticos representados em “Rede de Ódio” tentam ser diferentes do outro lado da moeda. Enquanto o mais liberal procura enfatizar as políticas migratórias, posando como “cool” entre os jovens e os artistas, o mesmo constrói sua campanha sob o apoio de estruturas progressistas. Do outro lado, o candidato a favor da família, não mede esforços para destruir o seu oponente e se preciso tocando até mesmo em sua vida. Ambos são lados distintos da mesma moeda que é conectada pelo fio em comum: Tomasz.

Como diria Bauman, grandes crimes partem de grandes ideias. Essa afirmação encaixa como uma luva para descrever a sociopatia do personagem principal. Transformar em realidade conceitos vistos como ideais no campo da abstração revelam-se armadilhas tanto para quem os projeta quanto para o outro. E isso é importante para que o filme assuma o tom de um thriller, na qual cada passo é imprevisível e chocante.

Assim, “Rede de Ódio” mostra ser um trabalho interessante e importante para o momento em que surge. Por mais doentias e assustadoras que as decisões de Tomasz soem, elas deixam claro como simples atos – como ignorar alguém no direct – são o suficiente para servirem de armas que alimentam o ódio e que adoecem cada vez mais a nossa sociedade. Torçamos para que não seja um presságio do que a Cultura do Cancelamento pode nos trazer.

CRÍTICA | ‘Deadpool & Wolverine’: filme careta fingindo ser ousado

Assistir “Deadpool & Wolverine” me fez lembrar da minha bisavó. Convivi com Dona Leontina, nascida no início do século XX antes mesmo do naufrágio do Titanic, até os meus 12, 13 anos. Minha brincadeira preferida com ela era soltar um sonoro palavrão do nada....

CRÍTICA | ‘O Sequestro do Papa’: monotonia domina história chocante da Igreja Católica

Marco Bellochio sempre foi um diretor de uma nota só. Isso não é necessariamente um problema, como Tom Jobim já nos ensinou. Pegue “O Monstro na Primeira Página”, de 1972, por exemplo: acusar o diretor de ser maniqueísta no seu modo de condenar as táticas...

CRÍTICA | ‘A Filha do Pescador’: a dura travessia pela reconexão dos afetos

Quanto vale o preço de um perdão, aceitação e redescoberta? Para Edgar De Luque Jácome bastam apenas 80 minutos. Estreando na direção, o colombiano submerge na relação entre pai e filha, preconceitos e destemperança em “A Filha do Pescador”. Totalmente ilhado no seu...

CRÍTICA | ‘Tudo em Família’: é ruim, mas, é bom

Adoro esse ofício de “crítico”, coloco em aspas porque me parece algo muito pomposo, quase elitista e não gosto de estar nesta posição. Encaro como um trabalho prazeroso, apesar das bombas que somos obrigados a ver e tentar elaborar algo que se aproveite. Em alguns...

CRÍTICA | ‘Megalópolis’: no cinema de Coppola, o fim é apenas um detalhe

Se ser artista é contrariar o tempo, quem melhor para falar sobre isso do que Francis Ford Coppola? É tentador não jogar a palavra “megalomaníaco” em um texto sobre "Megalópolis". Sim, é uma aliteração irresistível, mas que não arranha nem a superfície da reflexão de...

CRÍTICA | ‘Twisters’: senso de perigo cresce em sequência superior ao original

Quando, logo na primeira cena, um tornado começa a matar, um a um, a equipe de adolescentes metidos a cientistas comandada por Kate (Daisy Edgar-Jones) como um vilão de filme slasher, fica claro que estamos diante de algo diferente do “Twister” de 1996. Leia-se: um...

CRÍTICA | ‘In a Violent Nature’: tentativa (quase) boa de desconstrução do Slasher

O slasher é um dos subgêneros mais fáceis de se identificar dentro do cinema de terror. Caracterizado por um assassino geralmente mascarado que persegue e mata suas vítimas, frequentemente adolescentes ou jovens adultos, esses filmes seguem uma fórmula bem definida....

CRÍTICA | ‘MaXXXine’: mais estilo que substância

A atriz Mia Goth e o diretor Ti West estabeleceram uma daquelas parcerias especiais e incríveis do cinema quando fizeram X: A Marca da Morte (2021): o que era para ser um terror despretensioso que homenagearia o cinema slasher e também o seu primo mal visto, o pornô,...

CRÍTICA | ‘Salão de baile’: documentário enciclopédico sobre Ballroom transcende padrão pelo conteúdo

Documentários tradicionais e que se fazem de entrevistas alternadas com imagens de arquivo ou de preenchimento sobre o tema normalmente resultam em experiências repetitivas, monótonas e desinteressantes. Mas como a regra principal do cinema é: não tem regra. Salão de...

CRÍTICA | ‘Geração Ciborgue’ e a desconexão social de uma geração

Kai cria um implante externo na têmpora que permite, por vibrações e por uma conexão a sensores de órbita, “ouvir” cada raio cósmico e tempestade solar que atinge o planeta Terra. Ao seu lado, outros tem aparatos similares que permitem a conversão de cor em som. De...