“Editor-chefe do Cine Set. Exerce o cargo de diretor de programas na TV Ufam. Formado em jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas com curso de pós-graduação na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo”. 

Você encontra este texto na parte ‘Sobre o Autor’ desta crítica. Agora, quanto ela define sobre quem eu sou? Saber que sou jornalista, onde estudei e minha profissão permitem compreender a minha personalidade? Quantas vezes nos colocamos como bem ou mal sucedidos a partir de conquistas profissionais sem observar todo o resto? “Soul”, novo e brilhante filme da Pixar, liga este alerta na cabeça do público adulto enquanto, ao mesmo tempo, apresenta uma história ágil e veloz capaz de agradar também as crianças. 

Lançado diretamente na Disney+ com o selo da seleção do Festival do Cannes 2020, a animação acompanha a trajetória de Joe (Jamie Foxx), um frustrado professor de jazz de uma escola pública novaiorquina que tem a grande chance da carreira ao substituir um pianista da banda da saxofonista Dorothea (Angela Bassett). Porém, ele sofre um acidente e acorda já no caminho da luz (literalmente) como uma alma. Em uma fuga desesperada para tentar voltar à Terra e realizar o show, ele para em um mundo espiritual que vai moldando a identidade das futuras crianças. Lá, Joe fica com a missão de ajudar 22 (Tina Fey) a encontrar o seu próprio rumo. 

DO HUMOR AO DRAMA COM DELICADEZA 

“Soul” promove o encontro de Pete Docter e Kemp Powers tanto na direção quanto no roteiro – este último ainda com a colaboração de Mike Jones. Para quem dirigiu “Monstros S.A” sobre sonhos e pesadelos e “Divertida Mente” sobre o funcionamento cerebral em relação às nossas emoções, não chega a surpreender como Docter, mais uma vez, consegue transpor conceitos tão abstratos de forma visualmente clara e criativa. O espetáculo já começa no assustador limbo de tempo e espaço em que Joe cai em preto e branco para, em seguida, se transformar no reconfortante azul de tons suaves acompanhado de um leve roxo do Pré-Vida. Os tutores são construídos a partir de traçados condizentes com uma fase de conhecimento e indefinição sobre seus rumos, espelhando, ao mesmo tempo, o masculino e feminino com a capacidade de se transformar nas mais diversas formas, simbólico sobre a diversidade riqueza da raça e imaginação humana. 

Autor da peça “One Night in Miami” e roteirista da adaptação dela para os cinemas (forte candidato ao Oscar 2021), Kemp Powers traz a intensidade de uma história empolgante sempre capaz de mudar o seu rumo a cada 15 minutos de uma forma inesperada e muito bem construída. Quando estamos nos acostumando com a história no Pré-Vida, de repente, somos colocados de volta em Nova York em uma jornada que tinha tudo para cair em uma boba troca de corpos, mas, se torna essencial para a evolução da jornada do protagonista e 22. Não demora muito e uma nova reviravolta chega abordando com extrema delicadeza a depressão, demonstrando, aliás, a coragem da Pixar em não se inibir em discutir temas sérios para o público infantil como já ocorrera com a mesma doença em “Divertida Mente” ou a morte e o luto em “Viva” e “Dois Irmãos”. Para completar, o trio de roteiristas traz alívios cômicos impagáveis, especialmente, com as experiências de ícones da Humanidade em ensinar 22 – o que é a pobre Madre Teresa de Calcutá sem paciência? 

Por vezes, a montagem acelera demais o ritmo e “Soul” acaba deixando o público perdido em meio ao volume de informações de todo o universo construído. Caso tivesse duas horas de duração, situações como a relação entre Joe e a mãe poderiam ter sido mais bem desenvolvidos e emocionado ainda mais. 

UMA SEGUNDA CHANCE 

Ao ir na barbearia, 22 na pele de Joe conversa com o dono do local, o qual revela que o sonho da vida dele era ser um veterinário, mas, ao voltar da Marinha, se tornou cabeleireiro para conseguir pagar um tratamento de saúde para a filha. A pequena alma, então, deduz que, por não ter seguido a carreira que desejava, ele era uma pessoa infeliz. Imediatamente, com muito bom humor, o barbeiro rebate ao afirmar ser sim feliz sem nenhum tipo de problema. 

Em um mundo tão funcional e competitivo como o atual em que tudo vira número e estatística, cada um de nós se define muito mais pela atividade que exerce do que necessariamente pelo que é. Nossas características servem mais ou menos a determinado tipo de trabalho do que como fração de quem somos. “Soul” parte deste princípio para questionar este modelo tão limitante, capaz de sufocar nossas individualidades e belezas próprias que nos distinguem dos outros. 

O roteiro, inclusive, é hábil em descontruir essa visão de mundo ao colocar inicialmente o olhar de Joe na forma como conhecemos o Pré-Vida. Ainda ligado ao ritmo acelerado de Nova York, Joe se depara com uma estrutura que, aparentemente, indica um lugar para estabelecer o destino de uma pessoa, claro, determinado ao trabalho, à função social dela. Por isso, leva 22 em uma breve jornada pelas mais diversas profissões, entre elas, pintora e bibliotecária. Gradualmente, porém, o projeto de ser humano ensina ao adulto formado a importância de que simplesmente observar uma folha caindo ou sentir a água do mar tocando os pés pode ser muito mais marcante do que qualquer pseudo avanço profissional mínimo. 

Parece uma mensagem tão banal, tão comum, porém, segue de uma atualidade absurda, especialmente, levando em consideração a terrível pandemia da COVID-19. Afinal, essa funcionalidade exigida pelo mundo moderno permite a uma parte da sociedade encarar a mais grave crise da saúde pública dos últimos 100 anos com desdém, pois, a maior parte das mortes vem da parcela idosa, a qual já teriam cumprido sua função social, ou seja, são aposentados e não trabalham mais. Perdemos cada dia mais estas conexões humanas, inclusive, conosco a ponto de ver a barbárie diante de nós e nem mais nos impactarmos.  

“Soul” chega na hora certa para mostrar que estar na hora de dar uma segunda chance a todos nós antes que seja tarde demais. 

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