Em dado momento de “Um Casal: Sophia e Tolstói”, Sophia (Nathalie Boutefeu) recita uma carta de seu marido, o famoso escritor russo, que diz: “O artista tira o que há de mais belo em sua vida e coloca em sua obra. Por isso sua vida é uma nulidade.”

Sophia se revolta contra essa afirmação. Não, a vida de Leon Tolstói não pode ser uma nulidade porque Sophia faz parte dela, e ela se recusa a ser nula.

Frederick Wiseman, o lendário documentarista norte-americano de obras como “High School” e “City Hall”, concorda com Sophia. Afinal de contas, ele vem mostrando há mais de cinco décadas que, se tem uma coisa que a vida está longe de ser, é uma nulidade.

Também já está posta nessa passagem uma pista importante sobre “Um Casal – Sophia e Tolstói” – e, veremos, sobre toda a carreira de Wiseman: a questão da performance. Aqui, ela é articulada de forma díptica pelo diretor: a performance social, aludida na citação de Tolstói, a quem a vida cotidiana nada mais é do que uma série de convenções e banalidades performativas; e a performance, é claro, de Nathalie Boutefu, que, caminhando pelos bosques da França, interpreta Sophia Tolstói a partir de diversas cartas escritas pela mulher ao seu marido.

Mais do que apropriada, então, a posição que este trabalho de não-ficção, o terceiro da carreira de Wiseman, ocupa em sua obra. Natural para um cineasta que sempre capturou não só os emaranhados performáticos da cotidianidade, como as performances que surgem do encontro entre as pessoas que retrata e a objetiva de sua câmera.

Aqui, só Sophia fala – Tolstói é uma ausência. Nesse jogo de cena, Sophia emerge como espécie de figura dos “bastidores”, que agora ganha o direito de ser representada. Porque, se tem uma coisa que as cartas de Sophia demonstram, é a incapacidade de se estabelecer uma comunicação entre aquele casal. É essa comunicação que Wiseman tenta encenar, em um filme que se ergue a partir das lacunas, das ausências.

Wiseman pegando leve

Claro, é uma empreitada mais simples; com apenas 64 minutos, não há nada da exploração caleidoscópica das estruturas e corpos sociais a que os partidários de Wiseman estão acostumados.

O que talvez ajude a explicar a debandada do público da minha sessão. Talvez esperassem algo que remetesse de modo mais imediato aos seus documentários. Ganharam um filme que poderia muito bem funcionar como vídeo promocional de uma agência de viagens: tudo que quero é ir para a costa francesa onde essas imagens foram feitas, com direito a riachos onde patinhos vão nadar e abelhas saltando de flor em flor.

Sim, apesar da consonância com o restante da sua obra, “Um Casal” não deixa de ser um breve exercício fílmico da parte de Wiseman. Mas, quando se é um dos mais importantes cineastas vivos pra lá de seus 92 anos, você ganha esse direito.