Exibido no SXSW, “Raquel 1:1”, dirigido e escrito por Mariana Bastos (co-diretora de “Alguma Coisa Assim” e “Tapa na Pantera”), fez sua estreia no Brasil na Mostra de SP em uma sessão diurna e sem grande público. O filme, porém, merece maior atenção. 

Valentina Herszage é a personagem-título, a mulher que, segundo reconta a Bíblia, foi mal interpretada e se negou a seguir a vontade de Deus, que a fez estéril e buscou a fertilidade do seu ventre. A Raquel do filme é uma adolescente que sobreviveu a um acidente de carro, mas lida com demônios diários – o feminicídio que testemunhou e as chagas que atravessam o próprio corpo, provocadas por uma sociedade odiosa e abertamente misógina. 

Ela se muda da capital para uma cidade interiorana, onde o pai (Emilio de Mello) cresceu e busca recomeçar a vida. Em uma atmosfera de horror sobrenatural, Raquel passa a ouvir vozes e encontra refúgio para o espírito e suas dores na missão que se incumbe: revisar e reescrever certas passagens da Bíblia, em especial as que defenestram as mulheres. 

Perdoar quem destrói e faz o mal é fazer o bem? 

Raquel passa a provocar incômodo na célula evangélica que integra e nos moradores da cidade, todos frequentadores da igreja de uma pastora à la Damares, defensoras da moral e da família que passam a perseguir a menina profeta. Mariana Bastos avança na história com outros signos bíblicos, como as tábuas com línguas de fogo desenhando palavras, a formação de um grupo de apostolas que seguem Raquel e o clímax que ocorre na noite de cura e de oração na igreja. 

Exorcizar a mulher que demonstra ter autonomia, cuspir ódio, depredar a vendinha do pai dela e a casa onde vivem são metáforas não só dos atos do Deus colérico do Velho Testamento como daqueles que defendem “um país cristão”. O fogo que purifica, santifica Raquel – cujo significado em hebraico é ovelha – e a faz ser veículo de um Deus misericordioso que defende os proscritos. Ainda corre em paralelo a trama de Laura (Eduarda Samara), a menina que quer casar virgem com um menino da igreja, mas que mesmo não sendo tratada com o devido cuidado no roteiro gera algumas camadas a mais na história, com a personagem sendo a apostola mais fiel de Raquel. 

Diferentemente do resultado que Anita Rocha da Silveira obteve com “Medusa” (a temática aqui é a mesma), “Raquel 1:1” optou por uma simplicidade no tratamento na histórica e obteve mais êxito. A metáfora do “lobo em pele de cordeiro” e da “ovelha corrompida” se torna eficaz em meio a histeria religiosa – e bolsonarista – atual, sendo o recurso da possessão demoníaca utilizado a contento. Inclusive Valentina é a protagonista de outro filme de Anita, “Mate-me por Favor” e aqui, com o papel central, consegue materializar as incertezas da menina religiosa e profundamente traumatizada. 

“E a mulher então disse: 

Em nome das que foram 

E das que virão 

Uma nova era deve começar” 

Com a citação, bíblica ou não, “Raquel 1:1” é uma alegoria bem concretizada, ainda que imperfeita, de uma menina que quer provocar uma pequena revolução nos costumes ao confrontar seus traumas e a palavra divina pervertida por fanáticos religiosos. Tem as tintas de thriller, edifica o drama e administra as tensões ainda que haja alguns deslizes. Funciona como metáfora religiosa e atual, das profundezas do mal que a religião pode suscitar. E do despertar da consciência de alguns ou de algumas.