Os americanos são fascinados pela profissão de advogado e pelo que se passa num tribunal. Isso se reflete na ficção. Basta nos lembramos dos muitos filmes de tribunal, vários dos quais são clássicos do cinema, e dos inúmeros programas e seriados americanos de TV envolvendo policiais e advogados. Um desses programas, no entanto, fugiu do lugar-comum: Damages se vangloriava de ser o único seriado sobre advogados que não tinha cenas ambientadas no tribunal. Foi uma série que começou de forma espetacular e, embora nunca tenha chegado a ficar ruim, foi perdendo o fôlego ao longo do tempo. No entanto, ela também possui qualidades o suficiente para merecer ser redescoberta no futuro.

No mundo da nova era de ouro da televisão americana, os homens e seus anti-heróis dominam: Tony Soprano, Vic Mackey, Jack Bauer, Gregory House, Dexter Morgan, Don Draper, Walter White… A lista é extensa, porém Damages se destacou por ser um seriado sobre mulheres. Mulheres fortes e capazes de tudo para vencer no terrível mundo dos grandes processos judiciais americanos, nos quais as “perdas e danos” não se mediam apenas em cifrões, mas acima de tudo, em vidas e num custo pessoal muito alto.

Obviamente, o maior chamariz para a série foi a presença da atriz Glenn Close. No começo dos anos 2000, Kiefer Sutherland foi o pioneiro em 24 Horas: era um ator de cinema que se via subaproveitado na tela grande e migrou sem problemas para a tela pequena, aonde veio a ganhar prêmios e a alcançar uma popularidade que nunca havia conhecido antes. Outros nomes o seguiram ao longo dos anos, como Alec Baldwin, Steve Buscemi e Kevin Spacey, porém uma das primeiras a percorrer o caminho aberto por Sutherland foi Glenn Close. A atriz, que foi tantas vezes indicada ao Oscar e nunca ganhou, participou como convidada dos seriados The West Wing e The Shield e depois emendou com um papel fixo em Damages, cuja estreia ocorreu em 2007. Foi uma decisão acertada, pois seu trabalho na série lhe rendeu prêmios e aclamação.

Porém, a verdadeira protagonista de Damages era a jovem advogada interpretada pela (ótima) australiana Rose Byrne, até então mais conhecida como o interesse romântico de Brad Pitt em Tróia (2004). Byrne interpretava Ellen Parsons, advogada nova-iorquina a quem conhecemos na primeira temporada. A vida para ela ia muito bem: tinha um noivo médico, David (Noah Bean) e de repente recebe uma oferta de emprego dos sonhos na firma da renomada Patty Hewes (Close). Porém, sua vida logo se transforma num pesadelo, pois Patty está envolvida num processo contra o milionário Arthur Frobisher (Ted Danson), que fraudou seus empregados. Patty está disposta a vencer a qualquer custo e Frobisher está disposto a medidas igualmente extremas para não perder. Na luta entre os dois, Ellen é peça chave, e no decorrer da temporada algumas pessoas acabam morrendo na batalha de bastidores do processo.

Na verdade, algumas pessoas morrem já no início. Explico: um dos diferenciais de Damages era a forma como brincava com a cronologia temporal. A série abre com Ellen ensanguentada, correndo pelas ruas de Nova York, onde acabou de sobreviver a uma tentativa de assassinato. É um flash-forward, semelhante ao que víamos em Lost, e cada episódio acrescenta uma peça no quebra-cabeça destes acontecimentos futuros, ao mesmo tempo em que acompanhávamos o presente. Muitas vezes sabíamos que as coisas não acabariam bem, mas “como” as coisas chegariam a esse ponto, e os “por quês” eram os verdadeiros motivadores do suspense da história. Todas as temporadas repetiram essa estrutura narrativa, com variados graus de sucesso.

A respeito das temporadas, a primeira é inegavelmente a melhor e a mais bem construída. A repercussão foi tão boa que Damages divide com Mad Men a distinção de serem os primeiros seriados de canais a cabo básicos da TV americana a serem indicados para o Emmy de Melhor Série Dramática – Damages passava no canal FX e Mad Men no AMC. Pela primeira temporada, Glenn Close ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Série de Drama, e pela segunda, ela ganhou o Emmy na mesma categoria. A atriz já havia feito algumas mulheres duronas antes, mas nunca uma como Patty Hewes: sua fachada de bem sucedida escondia uma mulher fria e calculista que não se dava bem com o filho Michael (Zachary Booth) e que, ao longo dos anos, se despiu da sua humanidade. E Close, claro, retratou essa evolução de forma assustadora e intensa.

Porém, essa boa repercussão da crítica e dos prêmios não se refletiu em audiência e por quase toda a sua existência Damages teve de lutar para não ser cancelada. Após a primeira temporada, por exemplo, o FX demorou em renovar a série – tanto que a segunda temporada só veio em 2009. Novamente começamos com um flash-forward: Ellen ameaçando Patty com uma arma, dentro de um apartamento. Será que ela teria a sua vingança? Patty morreria? Essas foram as questões que sustentaram os 13 episódios da temporada até voltarmos para aquele ponto de partida.

Neste ano ficou claro que Damages pensava grande, trazendo atores de cinema para o seu elenco: William Hurt e Marcia Gay Harden apareceram, e o carismático Timothy Olyphant fez um novo interesse romântico para Ellen – ele partiu daqui para o seu próprio seriado, o ótimo Justified. No entanto, a trama da segunda temporada foi muito intrincada e dependente da primeira, e isso não ajudou a atrair novos espectadores. Ainda assim, o episódio final é fantástico e provavelmente o melhor da série – caso os produtores quisessem, poderiam ter encerrado o seriado aí sem problemas.

No entanto, o contrato com o FX previa uma terceira temporada, e ela veio em 2010. Inspirada por eventos da vida real – o escândalo do especulador Bernie Maddoff que lucrou com a crise econômica de 2008 – o terceiro ano trouxe Ellen de volta ao lado de Patty para investigar um caso contra a família Tobin. No elenco da temporada estavam Campbell Scott, Lily Tomlin, Martin Short e Keith Carradine. Também foi uma temporada muito boa, embora um pouco menos envolvente que as anteriores, e que terminou com um viés trágico – novamente, o custo das intrigas antes do julgamento levou a um desfecho sangrento para Patty e Ellen.

Damages foi efetivamente cancelada no final do terceiro ano por causa da baixa audiência. Porém os produtores da série e a Sony Television firmaram um acordo com a DirectTV americana e Damages se mudou para lá com um contrato para mais duas temporadas de 10 episódios cada, para encerrar a série.

A quarta temporada foi a menos interessante de todas, com o caso principal envolvendo uma companhia militar de mercenários prestando serviços ao exército no Afeganistão. Um dos soldados, Chris Sanchez (Chris Messina) entra em contato com Ellen, sua conhecida, para falar das operações ilegais da companhia do magnata Howard Ericson (John Goodman, num papel meio sinistro diferente dos tipos cômicos pelo qual o ator é conhecido). Ellen leva o caso até Patty, mas ao longo do tempo surge um novo conflito entre as duas. A temporada sofreu com o pouco suspense e o desinteresse gerado pela trama principal, mas a interação entre as duas personagens principais se manteve afiada.

E por fim, a quinta e última trouxe o definitivo duelo entre Ellen e Patty ao colocar as duas em lados opostos do mesmo caso, o processo contra o hacker Channing McClaren (Ryan Phillipe), um personagem visivelmente inspirado em Julian Assange. Para aumentar o drama, Ellen passa a servir como testemunha no processo que Michael inicia contra a própria mãe… Foi uma temporada melhor que a anterior e que conseguiu encerrar a série numa nota digna.

Com o tempo, Rose Byrne e Glenn Close, ao contrário das suas personagens, tornaram-se amigas, ao ponto da mais jovem considerar a veterana como sua mentora. E essa orientação, ao que parece, vem dando certo, pois Byrne é frequentemente vista em projetos bem sucedidos no cinema como a comédia Missão Madrinha de Casamento (2011) e o terror Sobrenatural (2011). No fundo, a amizade delas é o reflexo no espelho da relação central em Damages. O grande conflito da série, por todas as temporadas foi: Ellen vai se tornar uma nova Patty? Para as mulheres, o único caminho para se tornar bem-sucedida é ser mais agressiva e mais manipuladora do que todos ao seu redor? É possível triunfar num mundo tão competitivo quanto o do Direito sem perder a humanidade? Ou há outro caminho? Por mais problemas que a série tenha tido, ver a evolução dessas duas mulheres e as repostas que cada uma encontrou para essas perguntas foi um processo fascinante. Agora que a série finalmente encontra-se completa em DVD no Brasil com o lançamento recente da última temporada, é a oportunidade perfeita para o júri deliberar sobre Damages e descobrir (ou rever) esse interessante seriado e suas obstinadas protagonistas.