Era para ser uma justa e merecida homenagem ao poeta amazonense mais conhecido em todo Brasil, falecido em janeiro de 2022. O edital Thiago de Mello, porém, tornou-se um triste símbolo do preocupante momento vivido pela Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult) na gestão David Almeida à frente da Prefeitura de Manaus. 

Atrasos no cronograma, erros básicos de organização, falta de respostas aos participantes, comunicação falha da Manauscult e o descumprimento de artigos do certame provocaram o caos para artistas experientes e novatos de nove setores culturais que submeteram projetos no edital Thiago de Mello – inclusive, o autor deste texto.  

Tudo isso acontece meses antes da chegada da Lei Paulo Gustavo com quantias muito maiores que as executadas até aqui pelo atual comando da Manauscult. Que esta reportagem e os protestos já realizados pela classe artística contribuam para a evolução mínima de uma gestão muito aquém do que a cultura da capital amazonense precisa e merece. 

PRIMEIRO ATO: RETROCESSO NOS VALORES DOS EDITAIS

‘Concurso Prêmio Manaus 2022 – Thiago de Mello’ foi lançado em cerimônia no dia 5 de agosto pelo então titular da Manauscult, Alonso Oliveira. Foto: Antonio Pereira/ Semcom

A novela começa no 5 de agosto de 2022: nesta data, o Diário Oficial do Município (DOM) publica o edital Thiago de Mello – Artistas e Profissionais da Cultura, voltado para pessoas físicas e jurídicas com, pelo menos, duas atividades devidamente comprovadas no setor em que atuam. Até 55 projetos podiam ser contemplados em um orçamento de R$ 1,6 milhão em nove segmentos: artes visuais, audiovisual, circo, dança, hip-hop, literatura, tradições culturais, música e teatro.  

Quatro dias depois, o DOM traz o edital Thiago de Mello – Novos Talentos que, como o nome já deixa implícito, está voltado para iniciantes no setor artístico. Para este certame, a Manauscult fixou em até 88 projetos a serem premiados dentro de um orçamento de R$ 400 mil.  

Os problemas começam justamente pelos valores totais: os R$ 2 milhões somados dos Artistas e Profissionais da Cultura com os Novos Talentos superam somente o edital Zezinho Corrêa, lançado pela Manauscult em 2021, já na gestão David Almeida, com investimento de apenas R$ 1 milhão. O montante atual é o mesmo do executado em 2016 e 2017 no Conexões Culturais, edital da gestão Arthur Virgílio Neto (ex-PSDB), porém, sem levar em consideração os ajustes da inflação – para efeito de comparação, de 2017 a 2022, o real perdeu 31,32% do seu valor e poder de compra.  

A situação fica ainda mais constrangedora quando se leva em conta as duas últimas edições do Conexões Culturais: em 2018, o investimento foi de R$ 2,6 milhões, enquanto no ano seguinte chegou a R$ 3 milhões. O recorde aconteceu em 2020 graças aos recursos da lei emergencial Aldir Blanc que fez o montante chegar a R$ 14 milhões. “Fica explícito como não há o entendimento de que a cultura é uma economia. Se isso ocorresse, os editais teriam um reajuste de cálculo e haveria um valor proporcional de investimento à inflação do período”, declarou João Fernandes, diretor do centro cultural Casarão de Ideias. 

Zezinho Corrêa foi homenageado pela Manauscult no edital de 2021; certame teve prêmios de R$ 1.9 mil com descontos na fonte do Imposto de Renda.

A redução dos valores totais dos editais veio acompanhada de uma política de prêmios mais baixos para os ganhadores. O edital Zezinho Corrêa, por exemplo, chegou a ter projetos “contemplados” com R$ 1.9 mil o que, em caso de pessoa física, vinha ainda com desconto do Imposto de Renda na fonte. Para o edital Thiago de Mello Novos Talentos, o valor mínimo da premiação é de R$ 3 mil. 

Se por um lado permite acesso a um maior número de candidatos, a medida aumenta a precarização do setor e estimula valores abaixo do mercado, afinal, como fazer um projeto minimamente profissional com R$ 1.9 mil? De qualquer maneira, esta política segue sendo mantida pela Manauscult na elaboração dos editais, apesar das críticas permanentes de membros da classe artística. 

Os montantes do Edital Tiago de Melo são mais baixos do que o Conexões Culturais de 2014, em decorrência do desmonte das políticas públicas que vem ocorrendo tanto na cidade quanto no estado e a nível federal. Isso se deve ao período que estamos vivenciando, após o impeachment da Presidenta Dilma. Nesse período, o Ministério da Cultura foi gradativamente desmontado e, por fim, extinto. Ao longo de quatro anos, entre 2018 e 2022, as políticas culturais em nível federal desapareceram. Essa situação se reflete no âmbito municipal, em que os editais vão perdendo força e a política de fomento direto vai desaparecendo. Além disso, os indutores de crescimento do setor também estão desaparecendo, dando lugar a uma política de “pires na mão.

Michelle Andrews

Organizadora do movimento Mobiliza Cultura Amazonas e gestora do Coletivo Difusão

SEGUNDO ATO: A INTERMINÁVEL ANÁLISE DE DOCUMENTOS DOS INSCRITOS 

Todo o longo processo da análise da documentação dos candidatos ao edital está disponível no site da Manauscult. Foto – Oliveira Junior / Manauscult

Após prorrogação de uma semana feita pela própria Manauscult devido a solicitações da classe artística por um prazo maior, o período de inscrições online na plataforma Google Forms dos editais Thiago de Mello chegou ao fim no dia 30 de setembro. Na semana seguinte, o Diário Oficial apresentava a lista completa de todos os projetos sem distinção de módulos, somente com a divisão entre pessoas físicas e jurídicas – ao todo, 160 no Novos Talentos e 785 no Artistas e Profissionais da Cultura. 

A próxima etapa dos editais consistia na análise completa da documentação enviada por todos os candidatos no ato da inscrição – isso inclui cópias do RG e CPF, currículo, portfólio do proponente até certidões negativas de pessoas jurídicas junto a órgãos como Semef (Secretaria Municipal de Finanças) e Sefaz (Secretaria de Estado da Fazenda). Para tal missão de caráter eliminatório, a Manauscult formou uma comissão única com seis servidores da própria fundação para atender tanto o certame dos Artistas e Profissionais da Cultura como dos Novos Talentos. 

O resultado preliminar desta análise até não demorou a sair: dia 11 de outubro, o Diário Oficial apresentou a lista do Novos Talentos (158 projetos analisados com 74 habilitados) e três dias depois veio do Artistas e Profissionais da Cultura (786 projetos analisados com 363 habilitados). Esta, porém, não seria a primeira divulgação; longe disso, aliás… 

Em menos de uma semana, já no dia 17 de outubro, a Manauscult precisou republicar, via DOM, a lista preliminar do edital Novos Talentos e no dia 19/10 do Artistas e Profissionais da Cultura, alegando incorreções nas postagens originais. Nas erratas lançadas nos dias seguintes, percebe-se um acúmulo de falhas: troca do módulo financeiro ao qual o proponente havia se candidatado (uma artista de teatro, por exemplo, submeteu o projeto para um prêmio de R$ 10 mil, mas, apareceu no Diário Oficial entre os de R$ 5 mil), projeto desabilitado após anúncio de ter sido habilitado, projeto com título incompleto e até artista que teve dois projetos diferentes confundidos como um só. 

Diário Oficial do dia 1º de novembro de 2022 mostra errata corrigindo status de habilitação de proponente de música; casos do tipo não faltaram durante o segundo semestre do ano passado.

Conforme prevê os editais Thiago de Mello, o proponente dispunha de cinco dias úteis após o resultado preliminar da análise documental para entrar com recursos pedindo a revisão do seu caso junto à Manauscult. A mesma comissão técnica da fundação seria responsável pela reavaliação. Desta forma, o Diário Oficial divulgou as respostas aos recursos nos dias 3 e 4 novembro. 

No edital de Artistas e Profissionais da Cultura, a Manauscult apontou que foram 95 recursos com 29 aceitos, enquanto os Novos Talentos apresentava 18 pedidos de reavaliação e aprovação de apenas dois casos. A rotina de erros da comissão, entretanto, persistia: no dia 11 de novembro, houve uma nova divulgação no DOM trazendo mais projetos que simplesmente não apareceram na lista inicial.  

Desta forma, os recursos no edital Artistas e Profissionais da Cultura passaram para o número de 109 com 40 projetos obtendo êxito, enquanto os novatos tiveram 23 recursos analisados com cinco deferidos. Tantas idas e vindas, fizeram com que o Resultado Final da Análise dos Documentos enviados pelos proponentes fosse publicado apenas no dia 7 de dezembro, mas, ainda necessitando (claro) de uma republicação duas semanas depois, no dia 21/12. 

Resultado final da análise da documentação foi publicada em 21 de dezembro.

No fim das contas, o edital Artistas e Profissionais continuava com 404 projetos na disputa pelos 55 prêmios, enquanto o Novos Talentos com 81 propostas no páreo pelos 88 prêmios possíveis. 

O edital já começou problemático pela falta de espaço para a escuta pública da classe artística e, quando foi feita após as críticas, notou-se que as sugestões não foram acatadas. Logo, tivemos um edital realizado de cima para baixo. Na formulação do edital Thiago de Mello, nota-se um grande CTRL+C e CTRL+V de certames passados, inclusive, semelhantes ao Conexões Culturais de 2014. Não houve uma leitura e preparação adequada. 

João Fernandes

Diretor do Casarão de Ideias e criador do Festival Mova-Se

TERCEIRO ATO: ENTRA E SAI DE JURADOS 

Edital leva o nome do escritor amazonense Thiago de Mello, conhecido pelo clássico ‘Os Estatutos do Homem’.

Enquanto a análise de documentos dos candidatos aos editais Thiago de Mello se estendia pelo segundo semestre inteiro, a Manauscult preparava a etapa seguinte: a formação da Comissão de Seleção para escolher os vencedores. Pelas regras do certame, o grupo seria formado por seis pessoas divididas da seguinte maneira: 

  • Um servidor da Manauscult responsável por presidir a Comissão; nomeado pelo então diretor-presidente da fundação, na época, Alonso Oliveira; 
  • Três servidores da Manauscult com notório saber na área cultural; 
  • 18 curadores externos para o Novos Talentos e outros 18 para o Artistas e Profissionais da Cultural, todos eles selecionados no edital de Avaliadores de Projetos/Propostas Culturais realizado pela Manauscult lançado em 2022. 

Edital determina a formação de uma Comissão de Seleção para avaliar e dar notas aos projetos visando definir os vencedores. Guarde esta informação e imagem; ela será fundamental no quarto e quinto atos desta história.

O Diário Oficial de 25 de novembro de 2022 traz a lista de integrantes da Manauscult na Comissão de Seleção: o diretor de Políticas Culturais, Wallace Almeida, assumiu como presidente, enquanto os servidores Luci Mara Neumman Alves, Karoliny de Oliveira Martins Braga e Leonardo Grangeiro Novellino completam o grupo da fundação. 

Realizado no segundo semestre do ano passado, o edital de Seleção de Avaliadores de Projetos Culturais permitiu à Manauscult ter profissionais aptos para este tipo de trabalho, de todo o Brasil, sempre que requisitados, a partir de um sistema de revezamento entre eles. O resultado final saiu no dia 7 de outubro com 25 avaliadores aptos para análise de propostas de teatro, 25 em Cultura Tradicional, 22 para Literatura, 20 de Dança, 19 em audiovisual, 18 para a Música, 17 de Artes Visuais, 11 para Circo e somente dois para Hip Hop. 

A convocação para o primeiro trabalho dos avaliadores não demorou para acontecer: no dia 11 de outubro, a Manauscult anunciou a chamada dos pareceristas para os editais Thiago de Mello.

Convocação dos Avaliadores dos Projetos do Edital Thiago de Mello – Artistas e Profissionais da Cultura no Diário Oficial do dia 11 de outubro

Convocação dos Avaliadores dos Projetos do Edital Thiago de Mello – Novos Talentos no Diário Oficial do dia 11 de outubro.

Não demorou muito, entretanto, para as mudanças começarem no grupo de avaliadores: já em 19 de outubro, quatro nomes mudaram da publicação original do edital Artistas e Profissionais de Cultura – um de audiovisual, um de dança e os dois de literatura. Segundo a Manauscult no DOM, o motivo da troca se deu a não manifestação dos primeiros convocados.  

As alterações voltaram a se repetir nos dias 29 de novembro (um no segmento de circo e outro novamente no audiovisual no certame dos profissionais) e 7 de dezembro (dois de artes visuais e um de literatura nos profissionais; e um de audiovisual no edital dos novatos). Os primeiros termos de contratos começaram a ser publicados no DOM somente em 29 de dezembro, sendo pago R$ 50,00 por projeto analisado, como previsto no edital de Seleção de Avaliadores de Projetos Culturais. 

Por fim, somente em 31 de janeiro deste ano, cinco meses depois do lançamento dos editais Thiago de Mello, a Manauscult montou uma comissão para verificar o andamento da contratação e fiscalização das atuações dos 29 avaliadores. Segundo Wallace Almeida, houve pareceristas que estão tanto no certame do Artista e Profissionais da Cultura quanto no Novos Talentos. 

O valor pago por projeto analisado assim como a quantidade de propostas por avaliador praticados no edital Thiago de Mello estão na contramão do que ocorre em outros grandes centros urbanos do Brasil. Os R$ 50,00 são absolutamente irrisórios por não darem conta da complexidade técnica que se faz necessária em um edital como este, além de desvalorizar o processo de análise, o que irá provocar inevitáveis conflitos com todos os princípios da administração pública.  

Sobre o grande número de projetos para um avaliador, é algo humanamente impossível que alguém consiga dar conta de 76 propostas. Cada um destes trabalhos vai exigir um volume de conhecimento não condizente com o valor pago. Isso leva à precarização do serviço. O modo como isso tudo foi tratado pode ser considerado irresponsável. 

Taciano Soares

Fundador do grupo teatral Ateliê 23

QUARTO ATO: O ESDRÚXULO RESULTADO PRELIMINAR 

Resultado preliminar do edital Thiago de Mello não trouxe as notas muito menos quem foi contemplado. Foto: Flávia Moura/ Manauscult

Diante de tantos atrasos e erros, a percepção era de que não havia mais como piorar, certo? A Manauscult, entretanto, resolveu dobrar a aposta e lançou, nos dias 8 e 13 de fevereiro, respectivamente, os resultados preliminares dos editais Thiago de Mello Novos Talentos e Artistas e Profissionais da Cultura.  

Para a surpresa da classe artística, o resultado preliminar não trouxe quais foram os projetos mais bem avaliados e, consequentemente, contemplados dentro dos segmentos artísticos e seus respectivos módulos. O novo formato de divulgação é oposto ao seguido pelo Ministério da Cultura e pela própria Manauscult em editais anteriores. 

Desta vez, porém, a Manauscult optou apenas por divulgar no Diário Oficial quem estava “classificado”, ou seja, obteve a nota mínima de 61 pontos na avaliação dos jurados para seguir na disputa. Ao todo, 300 projetos foram “classificados” e 109 desclassificados. Para chegar a esta pontuação, a Comissão de Seleção analisa os seguintes critérios, de acordo com o edital: excelência técnica e relevância cultural; criatividade e inovação; exequibilidade orçamentária; qualificação do proponente; e proposta de contrapartida. 

A decisão de publicar o resultado preliminar sem a divulgação do ranking das notas dos projetos ou, pelo menos, do posicionamento dos proponentes em cada módulo gerou indignação da classe artística, alegando falta de transparência por parte da Manauscult. Afinal, se as notas já tinham sido dadas pelos jurados a ponto de “classificar” ou “desclassificar” projetos, por que não divulgar a lista de vencedores e suplentes?  

Classe artística lotou a caixa de comentários da conta da Manauscult no Instagram com perguntas e críticas à divulgação do resultado preliminar.

O Cine Set entrevistou Wallace Almeida, diretor de políticas culturais da Manauscult e presidente da Comissão de Seleção do edital Thiago de Mello, para entender as razões da escolha por este modo de publicação do resultado preliminar: 

Cine Set – Por que foi adotada a estratégia de divulgar o resultado preliminar sem os nomes de quem acabou sendo premiado? Por que não se seguiu exemplos anteriores que a própria gestão David Almeida já adotou? 

Wallace Almeida – Este caso não é uma decisão da Comissão de Avaliação. Isso é baseado no jurídico, na direção de uma forma geral. A Comissão de Avaliação está focada em acompanhar o trabalho dos avaliadores, verificando se eles estão fazendo tudo corretamente ou se necessitam de alguma assistência. O resultado preliminar divulgou apenas quem foi classificado em ordem alfabética. 

Cine Set – Sim, eu entendo, mas, por que houve esta escolha, diferente do que vinha sendo realizado? 

Wallace Almeida Caio, não sei te dizer, sinceramente, não sei te dizer. Foi algo que veio de cima para baixo.  

Cine Set – Quem determinou isso? Foi o jurídico? 

Wallace Almeida – Não, foi uma decisão em conjunto, incluindo, o corpo técnico da Manauscult. 

Cine Set – E por que o corpo técnico decidiu deste jeito? Quais foram as razões e justificativas em que basearam a decisão? 

Depois desta pergunta, Wallace pediu que as perguntas fossem encaminhadas para a assessoria de imprensa da Manauscult, a qual não respondeu aos 11 questionamentos sobre o edital Thiago de Mello feitas pelo Cine Set até o fechamento desta matéria.

Falando em comunicação, aliás, a fundação cultural mais confundiu do que explicou ao informar sobre as etapas do certame: na última semana de janeiro, por exemplo, um post anunciava o cronograma das próximas etapas sem diferenciar o edital para novatos e profissionais nem dar qualquer informação sobre o novo método de divulgação do resultado preliminar. 

Os releases e materiais divulgados nas redes sociais da Manauscult relativos ao resultado preliminar também não fizeram maiores esclarecimentos. Sobre o resultado final com o anúncio dos vencedores, a assessoria só veio dar uma posição oficial no dia 20 de fevereiro, terça-feira de carnaval, agora, diferenciando os editais Thiago de Mello em Novos Talentos e Artistas e Profissionais da Cultura. 

O resultado preliminar nem pode ser intitulado desta forma; o nome mais certo seria ‘Habilitação – Parte 2’, algo que não existe no edital. Isso causa uma insegurança muito grande, além da dúvida de que não haverá como realizar recursos após o resultado final. Não saber se o meu projeto foi premiado ou não fere uma confiabilidade e transparência em um processo já questionável. É a cereja do bolo desta aberração.

Diego Bauer

Co-fundador da Artrupe Produções Artísticas

QUINTO ATO: ESPELHO DE NOTAS E DE PROBLEMAS

Edital Thiago de Mello é dividido para artistas profissionais da cultura e novatos.

Após o resultado preliminar divulgado no Diário Oficial, os proponentes dos editais Thiago de Mello podem solicitar as avaliações dos seus respectivos projetos feitas pela Comissão de Seleção. Nelas, estão disponíveis as notas atribuídas por cada um dos três jurados e, em alguns casos, comentários feitos pelos curadores.  

Desta forma, os participantes do Novos Talentos e Artistas e Profissionais da Cultura, caso assim desejem, podem entrar com recurso junto à Manauscult solicitando uma reavaliação, a ser acatado ou não pela organização do edital. Se aceitos, estes recursos podem alterar as notas dos projetos e, consequentemente, o resultado final e dos vencedores do edital. 

Aqui, o primeiro desafio para a classe artística foi ter acesso às avaliações dos projetos: a Manauscult disponibilizou o e-mail previsto no edital – [email protected] – para a solicitação dos proponentes. Como previsto até pela forma de publicação do resultado preliminar, a demanda pelas notas foi grande, o que provocou demora e mais protestos da classe artística nas páginas oficiais da fundação. 

Artistas reclamaram no Instagram da demora da Manauscult em fornecer as notas dos projetos.

Para quem teve a oportunidade de receber as avaliações se deparou com um grave problema: a ausência de uma das três avaliações exigidas pelo edital Thiago de Mello. O Cine Set conversou com proponentes do certame Artistas e Profissionais da Cultura – João Fernandes, César Nogueira, Gustavo Soranz, Taciano Soares. Os quatro apontaram somente duas notas, todas de curadores externos.  

O autor desta reportagem recebeu o retorno de apenas uma das duas propostas enviadas ao certame. Também com apenas dois avaliadores em vez dos três previstos no edital. 

Três artigos presentes nos editais Thiago de Mello mostram que a presença dos três membros da Comissão de Seleção – um representante da Manausult e dois curadores externos vindos do certame de Avaliadores de Projetos/Propostas Culturais – se faz necessária durante as etapas de avaliações dos projetos:  

8.11. Cada membro da Comissão de Seleção atribuirá uma única nota para cada item respectivo da proposta avaliada, e será obrigatório apresentar argumentos e justificativas que fundamentem a sua nota; 

8.13. A nota final de cada projeto será a média aritmética simples das notas atribuídas pelos avaliadores, sendo esta, bem como aquelas atribuídas pelos avaliadores do projeto, de acesso exclusivo do proponente mediante solicitação formal e protocolizada na MANAUSCULT. 

8.14. Em caso de empate, serão consideradas a maior nota média aritmética no item “Excelência Técnica e relevância cultural da proposta”. Permanecendo o empate, serão consideradas as notas médias dos critérios subsequentes até que haja o desempate. Persistindo o empate entre as notas, a Comissão de Seleção, por maioria absoluta, estabelecerá o desempate a partir de critérios estabelecidos por eles e explicitados em ata.

Trechos do edital que mostra a necessidade da avaliação do representante da Manauscult membro da Comissão de Seleção.

Desta forma, as avaliações entregues aos participantes do edital são apenas parciais e não as notas finais, visto que falta a entrega da nota do representante da Manauscult da Comissão de Seleção. Tal cenário praticamente coloca um peso de voto de minerva ao integrante da fundação municipal, visto que, ao decidir por último, será o julgamento dele a apontar quem obteve a maior nota e contemplado com a verba.  

Até mesmo quem aparece no resultado preliminar como desclassificado pode contestar. Ainda que o artigo 8.10 aponte que o projeto estará automaticamente fora se tiver a média zero em algum dos cinco critérios estabelecidos de avaliação, a nota de um dos jurados pode mudar o resultado. Em todos os comunicados oficiais da Manauscult, seja no site, redes sociais e via release, não há qualquer tipo de informação ou esclarecimento sobre o assunto ou como se dá o processo de avaliação nesta etapa do edital.  

O importante seria que a Manauscult revisse essa conduta, a forma de construção de edital e de políticas públicas e abrisse esses processos para diálogo. Acredito que o Edital Thiago de Mello esteja fortemente prejudicado por tudo que vem sendo pontuado pela classe artística. Acho injusto pedir que ele seja suspenso, por exemplo, porque o segmento cultural já conta com pouco fomento e perder o pouco que tem é bastante prejudicial. Não sei quais seriam as possibilidades jurídicas de ajuste para o atual edital. Entretanto, espero que os próximos editais sejam aperfeiçoados e melhorados consideravelmente.

Michelle Andrews

Organizadora do movimento Mobiliza Cultura Amazonas e gestora do Coletivo Difusão

SEXTO ATO: VÁCUO DE PODER E PROTESTO NA MANAUSCULT

Alonso Oliveira esteve à frente da Manauscult durante os dois primeiros anos da gestão de David Almeida na Prefeitura de Manaus. Ele retornou à Câmara Municipal no início de fevereiro de 2023. Foto: Divulgação/ManausCult

Todo este caos acontece em um período de incertezas na Manauscult. A fundação segue sem um titular desde o dia 31 de janeiro quando Alonso Oliveira deixou a pasta para tomar posse como vereador na Câmara Municipal de Manaus. Entre nomes ventilados diariamente na imprensa, o que se sabe de concreto é que fevereiro se aproxima do fim com Oreni Braga como diretora em exercício. 

O vácuo de poder serve ainda para ilustrar a relação turbulenta entre David Almeida e a classe artística da capital. Logo no início do mandato em meio ao pior momento da pandemia em Manaus, em janeiro de 2021, o prefeito despertou dúvidas no setor ao anunciar Alonso Oliveira no comando da Manausult. A falta de qualquer relação com a cultura local do advogado trabalhista era o principal motivo da desconfiança. 

A situação se complicou ainda mais quando os nomes de Reizo Castelo Branco, Carlos Portta e Elias Emanuel, todos candidatos derrotados no pleito municipal de 2020, foram anunciados para cargos de segundo escalão da fundação. Os protestos nas redes sociais dos artistas de Manaus foram tão intensos que David Almeida recuou das nomeações.  

Troca do nome de Passo a Paço para Festival Sou Manaus foi desgaste desnecessário alimentado pela Manauscult em 2022. Foto: Semcom/Divulgação

Dias depois, o Conselho Municipal de Cultura de Manaus (Concultura), sob o comando do escritor Tenório Telles, passou a solicitar a prestação de contas com notas fiscais e documentos comprobatórios das despesas dos projetos vencedores do edital Conexões Culturais 2020 com recursos da Lei Aldir Blanc. O detalhe é que o certame, publicado em Diário Oficial, não solicitava tais exigências. Mesmo com protestos, a classe artística, em sua maioria, entregou as cobranças até então não previstas. 

Se as turbulências entre a classe artística e a atual gestão da Manauscult nunca chegaram ao mesmo patamar do início do mandato de David Almeida até o edital Thiago de Mello, isso não significa que os atritos cessaram totalmente. Foi o que se viu na desnecessária troca de nome do festival “Passo a Paço” para “Sou Manaus” e na escalação de poucos artistas amazonenses para os principais palcos do evento em 2022, levando à criação do “EXPAÇO – Festival de Artes”, realizado no Muiraquitã, na mesma data com line-up formado por nomes como Luli Braga, Luneta Mágica, Dan Stump, entre outros.  

A Lei Municipal de Incentivo à Cultura segue a passos lentos e os editais, como já dito, para abranger mais contemplados, praticam valores baixos, precarizando a mão de obra do setor. Por fim, neste carnaval, nem o prefeito David Almeida e o vice Marcos Rotta, ficaram em Manaus para acompanhar o desfile do grupo especial das escolas de samba, apoiadas pela Prefeitura em editais públicos, demonstrando, mais uma vez, o desinteresse dos mandatários na cultura local. 

Movimento Mobiliza Cultura Amazonas realizou protesto na frente da Manauscult na semana anterior ao carnaval 2023.

A panela de pressão estourou com a divulgação do resultado preliminar dos editais Thiago de Mello, motivando um protesto em frente à Manauscult no dia 14 de fevereiro. Liderado pela ativista política e cultural, Michelle Andrews, o movimento Mobiliza Cultura Amazonas reuniu profissionais dos mais diversos segmentos para reclamar da falta de políticas públicas culturais por parte da Prefeitura de Manaus.  

Com um carro de som na frente da sede da Manauscult, localizada no antigo Café Teatro Les Artistes, na Avenida Sete de Setembro, os manifestantes apontaram as constantes falhas do órgão. No momento mais tenso, os seguranças presentes fecharam a porta do local para impedir a entrada de artistas e profissionais da cultura que buscavam protocolar um documento solicitando uma audiência pública com os gestores da fundação. No fim, após negociações, permitiu-se a entrada de três integrantes do protesto para realizar a entrega do documento. 

Coincidência ou não, no dia 15 de fevereiro, o Diário Oficial trazia a instalação de uma comissão formada por membros da própria Manauscult para fazer o acompanhamento dos editais vigentes da fundação. Entre os objetivos do grupo de trabalho estão “acompanhar e fiscalizar a execução dos trabalhos, informar ao superior hierárquico a existência de fatos que comprometam ou possam comprometer as atividades ou metas ou de irregularidades na gestão dos editais, bem como as providências adotadas ou que serão adotadas para sanar os problemas detectados; emitir relatório técncio de análise da condução dos trabalhos; e acompanhar, orientar e fazer cumprir as etapas estabelecidas para cada edital, junto as comissões previamente constituídas”. 

SÉTIMO ATO: E O FUTURO? 

Lei Paulo Gustavo irá injetar mais de mais de R$ 17 milhões na cultura de Manaus em 2023.

O cronograma divulgado pela Manauscult em relação aos editais Thiago de Mello apontam que os resultados finais com o anúncio dos vencedores serão revelados no dia 27 de fevereiro no Diário Oficial do Município. Segundo Wallace Almeida, não haverá qualquer possibilidade de recurso após esta data. 

Nesta altura do campeonato, talvez, o edital Thiago de Mello seja o menor dos problemas para a classe artística e a própria Manauscult – caso, claro, não haja alguma ação no Ministério Público pedindo a suspensão do processo ou até mesmo a fundação decida por interromper o certame a partir do que for apurado pela comissão interna. O questionamento principal será em relação à Lei Paulo Gustavo, prestes a ser regularizada no Ministério da Cultura. 

Caberá aos Estados e municípios realizarem editais públicos para contemplar a classe artística em moldes semelhantes ao ocorrido com a Lei Aldir Blanc no final de 2020. O Amazonas deve receber R$ 86,8 milhões da Lei Paulo Gustavo, sendo R$ 51,5 milhões de repasse destinado diretamente ao Estado e outros R$ 35,3 milhões aos municípios – Manaus sozinha ficará com mais de R$ 17 milhões. 

Para uma Manauscult que já se complica com editais orçados em R$ 1 milhão (Zezinho Correa) e R$ 2 milhões (Thiago de Mello), a perspectiva não é nada boa.  

A expectativa em relação à Manauscult sobre as leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo é a pior possível. O projeto de governo da cidade de Manaus não é o mesmo do atual Governo Federal; o prefeito David Almeida tem um método bolsonarista de pensar cultura, sendo refletido na maneira como se investe no setor e em quem ele delega para trabalhar nos maiores cargos da fundação cultural.  

Estas pessoas não têm o interesse em fazer um processo democrático, expansivo, capaz de abarcar mais gente e dando oportunidades para mais pessoas serem contempladas. Não se pensa a cultura como algo para a massa e para muitas pessoas fazerem. Isso torna o papel da sociedade absolutamente fundamental em cima dos valores da Lei Paulo Gustavo, indo além da classe artística e dos proponentes, mas, também envolvendo a imprensa e órgãos públicos de fiscalização.

Diego Bauer

Co-fundador da Artrupe Produções Artísticas