Logo de cara Elle, novo trabalho do mestre Paul Verhoeven, mostra que é um filme que veio pra despertar discussões fortes, incômodas, distantes do conforto do cinema comercial e do senso comum cult, começando com os dois pés na porta.

Ainda em tela preta ouvimos um barulho de briga, uma mulher está sendo agredida. Um gato surge na imagem, observa a cena, retira-se como se não se quisesse fazer parte daquilo. Assistimos ao final da sessão, um homem sobre uma mulher no chão da sala, louças quebradas pelo solo. Um estupro, o final de um estupro.

O homem encapuzado sai da sala. A mulher parece despertar de um torpor, levanta-se e de maneira objetiva pega uma vassoura e começa a varrer os estilhaços no chão. Não há choros, nem desespero. E o seu dia segue, não como se nada tivesse acontecido, mas como alguém que entende que não há nada que se possa fazer pra reverter aquilo, e que o melhor a se fazer é continuar a sua vida.

Essa mulher, conhecemos depois, é Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), uma bem sucedida diretora de uma empresa de games, que mantém uma postura altiva, decidida nas suas relações, desde aquela com os seus jovens empregados, passando por seu amante controlador, com a mãe que se envolve com um homem muito mais novo, com o filho e ex-marido inseguros. Após o estupro, o agressor permanece em contato com ela mandando mensagens, ameaçando-a, o que faz com que ela mantenha-se atenta a todos os homens com quem se relaciona, ao mesmo tempo que tem lidar com uma série de questões em família, trabalho e sexo.

Isabelle Huppert em Elle

Um fator fundamental para o nosso entendimento dessa personagem e, consequentemente, pra que entendamos o motivo das suas ações e comportamento, está relacionado a um fato que aconteceu na sua infância, relacionado a um episódio com o seu pai. Michèle é uma sociopata. Isso fica bem claro quando observamos as suas relações, e notamos o que a estimula, o que desperta o seu interesse, e o que não desperta nada nela.

Elle é um filme de relações doentias, provocadoras, que nos desafiam e instigam como há tempos não se via no cinema com tanta potência. Puxando da memória, a última vez que vi um filme tão “sujo” foi Killer Joe (2015), de outro mestre “loucão”, William Friedkin.

Michèle não se sente intimidada pelo estuprador, e por suas constantes ameaças. Da mesma maneira que não se intimida nas relações com os seus funcionários, quase todos homens jovens, com o seu amante, com o seu ex-marido e com o seu filho. Pelo contrário, parece gostar do clima de confronto e inimizade que acumula nos ambientes onde frequenta. Ela dita as regras de todas essas relações, e talvez por isso se sinta, de alguma maneira, curiosa, desconfortável – no bom sentido – por embarcar numa relação que não é ela quem domina, tendo que tatear por sentido, colocando em prática todos os seus atos e pensamentos amorais sem constrangimento. Michèle é vítima de um ato de abominável violência, mas ao mesmo tempo ela possui um comportamento tão agressivo e ousado que faz com que ela, aparentemente, seja também uma mulher tão perigosa quanto para muitas pessoas.

Isabelle Huppert em Elle

Mas claro, é preciso ter cuidado. Verhoeven sabe que seria absolutamente inaceitável apresentar um filme que uma mulher estuprada, por mais sociopata que seja, de alguma maneira sentisse curiosidade, ou excitação pelo seu estuprador, deixando de lado a violência e a violação que este ato significa. Não é nada simples o jogo proposto pelo diretor, não é um caso simplista de síndrome de Estocolmo, ao mesmo tempo que não é uma macho woman que não tem medo de nada. Respostas prontas não entram aqui.

Defendido e atacado fervorosamente por feministas ao redor do mundo, Elle é um filme de mulheres fortes, dominantes, cercadas de homens inseguros, cheios de imperfeições e presos a relações mentirosas. O sexo objetivo, rápido e impessoal, uma das armas que algumas mulheres usam para empoderar-se diante do machismo e da misoginia (que infelizmente parecem crescer ainda mais na nossa sociedade com o passar do tempo, vide aberrações como Trump e Bolsonaro) está absolutamente presente nas relações de Michèle. Da mesma maneira que está nas outras personagens femininas, na mãe de Michèle, com o relacionamento com um gigolô bem mais novo, passando por sua nora, que evidentemente teve um caso extra-conjugal. Verhoeven é um diretor que gosta da controvérsia e não tem medo do confronto, como já mostrara em 1992, com Instinto Selvagem, um filme bem maior do que a – clássica – cena da cruzada de pernas da Sharon Stone.

É bem verdade que o filme é dirigido por um homem, tendo na equipe outros vários homens. Dessa maneira, ao feminismo assumido pelo filme, sem dúvida nenhuma, cabe questionamentos, e sempre fica a dúvida se a violência contra a mulher presente aqui é fetichista ou não. Na minha opinião (de homem, ou seja, não especialista em feminismo, entendendo que por conta disso a minha análise já nasce incompleta), o posicionamento do diretor legitima as suas escolhas, e o desfecho do filme mostra que Michèle, apesar de aparentemente ter gostado de se envolver em um jogo perigoso, compreende a natureza dos acontecimentos no qual esteve envolvida, e entende que aquilo não é aceitável.

Paul Verhoeven e Isabelle Huppert no set de Elle

Se estamos falando tanto desse filme, isso se vem também por conta do impressionante trabalho de Isabelle Huppert. Adotando uma personalidade direta e confrontadora, através de um trabalho econômico nas expressões, a atriz cria uma das personalidades femininas mais fortes do cinema contemporâneo. Amoral, rigorosa, vil, sexy, contestadora, corajosa, Michèle é daquelas personagens que seria um mico enorme nas mãos de qualquer atriz que não fosse muito talentosa. O sucesso do filme depende totalmente da capacidade da atriz de fazer com que acreditemos naquela pessoa vivendo situações tão desafiadoras e incomuns. Huppert carrega nas costas esse filme com a segurança de uma atriz que tem consciência do papel que possui no cinema mundial, numa daquelas atuações para sempre.

Por mais que seja possível questionar as escolhas temáticas e a abordagem adotada por Verhoeven, Elle é um dos filmes essenciais de 2016, um trabalho que se arrisca, que não joga na certeza, e que desconforta o espectador da maneira que somente um grande mestre consegue.