As notícias vindas da Argentina após a eleição do anarcocapitalista Javier Milei relembraram períodos difíceis para quem trabalha no setor audiovisual brasileiro. A informação de que futuro presidentes do hermanos pretende privatizar a Telám, a TV pública do país, e a Rádio Nacional não são tão diferentes do que pretendia Jair Bolsonaro ao chegar ao comando do país em 2019.

Se não houve a venda para o setor privado, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) viu a configuração dela de caráter público mudar para se tornar um canal de comunicação governamental. O ponto mais baixo do processo foi a transmissão da infame reunião do ex-presidente com embaixadores internacionais para alegar que o sistema eleitoral do Brasil era passível de fraude, algo nunca provado por ele.

Com a eleição do Governo Lula, a EBC passa por um novo momento de reconstrução. Roteirista de sucessos do cinema brasileiro como “Bruna Surfistinha” e “Tim Maia”, passagens por importantes séries da televisão do país, Antonia Pellegrino é uma das profissionais por trás da missão de retomada da empresa. Durante o Matapi 2023, em Manaus, ela conversou rapidamente com o Cine Set sobre estas etapas e o que esperar da EBC e TV Brasil para 2024.

Cine Set – Gostaria de saber como está sendo este processo de retomada da EBC neste primeiro ano de governo após anos muitos complicados para a empresa.  

Antonia Pellegrino – Assumi a direção de conteúdo e programação da EBC no começo de 2023 após seis anos de uma reorientação política diferente na empresa. Foi um período de deformação institucional que impactou, sobretudo, a área de comunicação pública, a missão prioritária da entidade. Passou-se a utilizar para outros fins, no caso, a comunicação governamental, a qual é sim um papel desempenhado com muito orgulho pela EBC, mas, prioritariamente, ela existe para a comunicação pública. 

As consequências desta distorção aconteceram em diversos níveis: o orçamento foi dilapidado, os servidores passaram por dois Programas de Demissão Voluntária (PDVs) causando uma diminuição grande da força de trabalho da empresa, a saúde mental dos trabalhadores foi afetada pelo assédio moral coletivo enfrentado por todos eles – a ponto da EBC ter sido condenada pelo Ministério Público do Trabalho. Era um quadro bastante agravado que necessitava de bastante atenção. 

Desta forma, a nova diretoria assumiu compromissos estratégicos como voltar a produzir, o que ela abriu mão nos últimos anos para licenciar conteúdos; retomar o foco na comunicação pública. Estamos trabalhando com muito empenho nesta reconstrução, incluindo a própria infraestrutura da empresa. Um funcionário que viu todo o desmonte e enxerga este novo momento vendo as coisas acontecendo, naturalmente, se motiva e se reconecta com o seu fazer. 

O ano trouxe ainda uma nova programação. Programas como o “Trilha de Letras” apresentado pela Eliana Cruz e “Dando a Real com Demori” com o jornalista Leandro Demori se juntaram ao retorno do “Partituras”, nosso programa de música clássica. Isso mostra a vocação da EBC para o conteúdo cultural. 

Cine Set – Você falou sobre esta diferenciação entre a comunicação pública e governamental. Como fazer com que a gente não regrida de novo neste cenário? 

Antonia Pellegrino – Os mecanismos que garantiam que a EBC fosse destinada à comunicação pública precisam ser recriados. Precisa-se entender qual será o arcabouço institucional capaz de garantir que a empresa faça o que necessita realizar. Isso ainda está em debate até porque estas alterações passam pelo Congresso Nacional, logo, há toda uma agenda e negociações políticas em torno disso.   

O seu questionamento de como fazer como isso não aconteça mais é realmente a pergunta de um milhão de dólares (risos). Hoje, com 11 meses de governo, você analisa tudo o que foi feito no Ministério da Cultura. Nossa, quanta coisa foi alcançada! Voltou potente como nunca e em várias linguagens. Mesmo isso sendo tão nítido para muito além de quem é do setor, houve quem decidiu por acabar com ele lá atrás.  

Será necessária uma resposta institucional firme para que não tenhamos que viver em uma eterna retomada – retomada do cinema, retomada da comunicação pública -, mas, sim em uma trajetória firme e regular. 

Cine Set – O que a EBC está planejando para 2024? 

Antonia Pellegrino – Teremos muito mais conteúdos, entre eles, o material do Prodav (Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro TVs Públicas) que chegará em bom volume no ano que vem. Estas obras nos darão mais produções independentes e regionais.  

Fizemos também a opção estratégica de adquirir muito conteúdo brasileiro, dando foco ao cinema nacional na tela da TV Brasil. O público ainda verá novas produções originais da emissora. De alguma maneira, conseguimos arrumar a casa e colocar o bloco na rua. 

Antonia Pellegrino, ao lado de Marcelo Gomes na gravação do programa Cine Resenha, da TV Brasil. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Cine Set – Aproveitando sua vinda aqui no Matapi, o que você sente da produção audiovisual do Norte do Brasil?  

Antonia Pellegrino – O Prodav foi muito importante para que a região produzisse de forma ainda mais intensa e permanente. Isso fica muito claro quando vemos o cinema nortista ganhar o Festival de Gramado com “Noites Alienígenas”, o qual, aliás, será uma das atrações da TV Brasil em breve.  

Logo, é muito importante que a gente traga para a TV Pública estes conteúdos, inclusive, exibimos programas da TV Encontro das Águas assim como o “Cozinha Amazônica”. São atrações que geram muito interesse até pelo fato da Amazônia estar no centro de uma série de discussões. Queremos falar da Amazônia, mas, principalmente, que a Amazônia fale sobre si mesma.