Primeiro, um aparte pessoal, caro leitor: em 2005, Ridley Scott lançou Cruzada, épico sobre o cerco a Jerusalém e eu o vi no cinema. Ao sair da sessão, disse para mim mesmo, “é bom, ok”. Algum tempo depois, assisti a versão estendida do mesmo filme em Blu-Ray e essa percepção mudou: de apenas bacana, Cruzada se tornou, para mim, o melhor trabalho de Scott desde o clássico de ficção-científica Blade Runner: O Caçador de Androides (1982), graças aos cerca de 45 minutos a mais que o filme ganhou.

Tudo isso para dizer que o tempo, às vezes, faz diferença. Em Napoleão, a nova produção épica de Scott, a mesma sensação se repetiu. Napoleão é bom, ok, mas tinha potencial para ser mais. E o maior problema dele envolve justamente o tempo: é um filme simplesmente incapaz de dar conta da vida e dos feitos do general que virou imperador da França. O diretor e seus colaboradores até tentam, mas pouco mais de duas horas e meia é pouco para contar essa história direito.

Os principais momentos da vida de Napoleão Bonaparte – vivido por Joaquin Phoenix – estão lá: a ascensão militar, o casamento com a intempestiva Josefina, a campanha no Egito, a coroação como imperador, a primeira vitória na Rússia, a derrota posterior no mesmo país, os exílios e a batalha de Waterloo. Tudo, porém, é tão corrido no roteiro de David Scarpa que o filme acaba carecendo de mais profundidade. Nem se trata de ser um filme do tipo “resumo da Wikipédia”; é mais o caso de alguém ler o resumo da Wikipédia sobre Napoleão dentro de um carro em alta velocidade!

PHOENIX E KIRBY ACIMA DA MÉDIA

Na parte técnica, colaboradores habituais de Scott, como a figurinista Janty Yates e o designer de produção Arthur Max – que já trabalharam em outros épicos históricos de Scott como Gladiador (2000) e o já mencionado Cruzada – estão de volta aqui, realizando grandes trabalhos como de praxe. Do ponto de vista de valores de produção, Napoleão é um espetáculo visual quase irretocável, filmado em grandes cenários – que recebem aqui e ali algumas expansões digitais – e contém, pelo menos, duas cenas impressionantes de batalha. A recriação de Waterloo, em especial, é de tirar o fôlego, e Scott e os montadores Claire Simpson e Sam Restivo criam um primor de sequência, na qual sempre se consegue entender a movimentação dos exércitos e as manobras de batalha.

Ainda assim, não deixa de ser uma pena que o trabalho de cinematografia de Darius Wolski – outro que já trabalhou com Scott – seja até um pouco monótono, com o filme adotando o mesmo visual frio e com paleta de cores sem vida por quase toda a sua duração.

Porém, para além dos aspectos técnicos, o filme se sustenta mesmo nos ombros dos seus dois grandes astros principais: Phoenix vive Napoleão como um sujeito sempre tenso, de fala baixa, como se reprimindo alguma coisa, e quando extravasa, esses momentos têm impacto. É mais uma atuação precisa e interessante da carreira dele, com direito até alguns momentos de humor e que mostram o lado patético do homem. Porém, até mais do que a Phoenix, o longa pertence a Vanessa Kirby, que rouba todas as cenas em que aparece como Josefina, a mulher que impulsionou Napoleão a boa parte das suas realizações. É o relacionamento dos dois, com altos e baixos, que fica com o espectador ao final da sessão, mais do que o gênio militar do protagonista – só enfocado de verdade em uma cena no início – ou os seus feitos.

RESULTADO FRUSTRANTE

De fato, as ideias mais interessantes presentes no texto de Scarpa são as que trazem uma visão irônica, até mesmo satírica, a respeito da masculinidade e do “homem gênio incompreendido que tudo pode”. Em diversos momentos, o filme fica engraçado e tira sarro da figura de Napoleão, mostrando-o mesmo como um homenzinho inseguro. Em tempos de outros homenzinhos de masculinidade insegura causando mal no mundo, essa abordagem em torno do personagem é bem-vinda. Esse é um tema, aliás, com o qual Scott já lidava lá no seu primeiro filme, o ótimo Os Duelistas (1977), também ambientado parcialmente nas guerras napoleônicas – e o plano de um soldado congelado na neve em Napoleão lembra um momento do longa dos anos 1970.

Mas, entre qualidades e defeitos, filmes vivem, morrem ou sofrem nos detalhes. E aqui Napoleão sofre mesmo pela correria. A coroação do imperador passa voando na tela; depois em três minutos ele arruma uma pretendente a esposa, a conhece e a engravida; e perto do fim tome diálogo expositivo e narração em off para fazer com que Napoleão vá da Rússia a Elba em menos de um minuto. A pressa é tão grande que alguns pontos da trajetória de Napoleão, e também de Josefina, ficam mal definidos dentro da narrativa.

Há uma explicação (mercadológica/financeira) para isso: Scott já anunciou que quando Napoleão estrear na Apple TV, o serviço de streaming que co-financiou o épico, ele o disponibilizará em uma versão de quatro horas de duração. Hoje em dia, no atual cenário da exibição na sala escura, lançar uma versão mais curta é um pouco compreensível, mas não deixa de ser também uma decisão medrosa – é chato comparar, mas há pouco tempo Martin Scorsese não quis nem saber e lançou seu Assassinos da Lua das Flores com 3h30 do jeito que quis…

Muito se fala atualmente sobre duração dos filmes – eu mesmo escrevi artigos a respeito aqui no site. Este, entretanto, é o caso de filme que precisa ter mais tempo, mais tecido conjuntivo em seu interior para conectar os fatos históricos. Do jeito que está, Napoleão tem suas qualidades e vale ser visto. Porém, não deixa de ser frustrante o fato de que parecem faltar algumas peças na engrenagem, algumas emendas que deixem o produto respirar e ser mais orgânico. E também é frustrante ver o streaming tendo primazia sobre a sala escura, mais uma vez.

Bem, talvez com a versão do diretor, o negócio vá fluir melhor? Como aconteceu com Cruzada? A conferir…