Se há um filme que merece a definição de cult, é esse. Pode até ser perigoso recomendá-lo ao público de ocasião, tamanha a radicalidade da obra. Mas cinéfilos mais calejados não podem deixar de assistir a Eraserhead (1977), do diretor americano David Lynch.

Primeiro trabalho de um dos criadores mais interessantes do cinema, o filme é um delírio em preto-e-branco sobre – entre outras coisas – um homem solitário e seu bebê monstruoso e deformado. Atraente, não? Mas, por estranho que pareça, Eraserhead não é um filme de terror. Nem de drama. Nem de qualquer outro gênero estabelecido, imutável, fechado. Eraserhead é um exercício criativo e profundamente pessoal de um artista sob tensão.

Não é brincadeira. Para se ter uma ideia, o filme levou cinco anos para ser produzido, período em que Lynch teve de fazer “bicos” (como entregador de jornais e operário) para poder sustentar a família e concluir a obra. Mas tanto esforço valeu a pena. O filme chamou a atenção imediatamente, ainda que mais pela aparência bizarra do que por suas qualidades cinematográficas. Felizmente, alguns observadores atentos não deixaram que estas passassem batido.

Um dos que o aclamaram no ato foi ninguém menos que Stanley Kubrick. Famoso por 2001: Uma Odisseia no Espaço e Laranja Mecânica, Kubrick usou-o como referência para a produção de O Iluminado (1980). George Lucas também foi fisgado. O autor de Guerra nas Estrelas pediu a Lynch que dirigisse o terceiro capítulo da trilogia original (hoje Episódio VI – O Retorno de Jedi), no que, infelizmente, foi recusado (quem sabe no que teria dado a versão de Lynch para a história? Será que os chatíssimos ewoks chegariam vivos ao final?). Quem levou o passe foi Mel Brooks, ator, produtor e dramaturgo, que o escalou para dirigir O Homem Elefante (por sinal, um filme belíssimo, sobre o qual pretendo escrever em breve).

Mas, voltando a Eraserhead, ressalto: o filme não se parece em nada com o que estamos acostumados a assistir. A rigor, não existe uma trama: a obra reúne episódios desconexos da vida de Henry (o protagonista, vivido por Jack Nance) relacionados ao bebê. Lynch não economiza em sangue, fluidos e deformações diversas (uma prévia: o aquecedor de Henry abriga uma mulher misteriosa, com bochechas grotescamente aumentadas, que apresenta números musicais enquanto monstros despencam do teto). Se, ainda assim, você se dispuser a enfrentá-lo, sairá recompensado: Lynch é um cineasta corajoso, que investe nas próprias visões para comentar o mundo atual. Se for possível compará-lo a criadores de outras artes, o próprio diretor deu a pista: seus artistas favoritos são o escritor Franz Kafka e o pintor Francis Bacon, que espelham a mesma perplexidade com o lado escuro da vida. Para quem não se contenta com comédias românticas ou filmes de ação, o remédio é David Lynch e seu Eraserhead.