Em 1987, Abbas Kiarostami colocou “Onde É a Casa do Amigo?” no mundo. Foi um daqueles hits nos festivais que cimentam uma certa mítica em torno de um diretor. Pouco depois, um terremoto devastou o norte do Irã, incluindo os vilarejos onde Kiarostami havia rodado o filme. A busca pelos atores não-profissionais daquela produção em meio aos destroços da tragédia originou o metalinguístico “E a Vida Continua”. Nele, um diretor e seu filho tentam voltar a Koker para encontrar os atores de… “Onde É a Casa do Amigo?”, o filme do próprio Kiarostami. 

E então, em 1994, surge “Através das Oliveiras”. Se “E a Vida Continua” trata dos vestígios de “Onde É a Casa do Amigo?”, “Através das Oliveiras” trata da filmagem de “E a Vida Continua”. Há novamente um diretor assumindo o lugar que, na vida real, coube a Kiarostami, dessa vez dirigindo cenas que vimos previamente no longa de dois anos antes. É um grande labirinto auto-referente absolutamente enlouquecedor para os não-iniciados. 

De modo que é difícil, sim, falar de um desses filmes sem mencionar os outros. Mas a surpresa para o espectador desprevenido é que, apesar de toda a premissa metalinguística assustar, Kiarostami está longe de ter a mão pesada. Pelo contrário, “Através das Oliveiras” retoma uma certa verve burlesca que, presente em “Onde Está a Casa do Amigo?”, se dissipa no segundo filme da trilogia. Era nesse sentido de burlesco, talvez, que o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum pensava ao comparar Kiarostami a Jacques Tati em seu texto para “E a Vida Continua”. Pode ser, mas me parece que “Através das Oliveiras” é um filme bem melhor resolvido que seu antecessor.

 CONFORTO NAS CONTRADIÇÕES

É como se em “E a Vida Continua”, Kiarostami sentisse o peso da tarefa auto-imposta – retratar a tragédia de Koker -, e tremesse ante suas incongruências: os limites entre documentar uma catástrofe e explorá-la se tornam fluidos quando o circo de um set de filmagens é armado numa cidadezinha destroçada. O resultado são reticências desconfortáveis na busca pelo sublime.

“Através das Oliveiras”, do contrário, já soa mais incisivo, mais confortável em suas contradições. Não há no filme predecessor, por exemplo, um só plano tão bonito e doloroso quanto aquele em que vemos os dois meninos protagonistas de “Onde É a Casa do Amigo?”, agora já crescidos, correndo no espelho retrovisor de um carro, enquanto uma barraca erguida para desabrigados do terremoto é vista pela janela. De certa forma, é como se o expurgo de “E a Vida Continua” tivesse sido necessário para que o olhar do diretor ressurgisse apurado neste longa.

E no centro de tudo, enquanto a parafernália da equipe de filmagem causa um fuzuê entre os sobreviventes de Koker, há Hossein. Esse romântico inveterado, além de servir de faz-tudo no set e dar uma canjinha como ator, tenta pedir a mão da amada em casamento entre uma tomada e outra, sem sucesso. O cinema tem um jeito só seu de se intrometer na vida das pessoas e fazer de tudo uma bagunça, mas também consegue revelar pequenas pérolas do cotidiano e lampejos de beleza – o “vento nas árvores”, como diria Griffith. E o que não falta em “Através das Oliveiras” são árvores ventando.