O cotidiano de uma viúva no decorrer de três dias. É partindo desse ponto que Chantal Akerman entrega “Jeanne Dielman”, sua obra-prima, considerado um dos filmes mais disruptivos e únicos da história do cinema. Acompanhamos a rotina repetitiva e ritualística da personagem de Delphine Seyrig e como esses gestos dizem muito sobre a protagonista e as convenções sociais, ainda que o silêncio predomine a trama.  

Estamos diante de um estudo de personagem que se estimula e desenvolve nos detalhes. Tudo que sabemos em primeira mão é que Jeanne está viúva há, pelo menos, seis anos, na casa dos quarenta anos e tem um filho adolescente – essas são informações importantes para que entendamos o cuidado excessivo que tem com o seu cotidiano. Ela é uma mãe zelosa, dona de casa diligente e vizinha amigável, no entanto, para manter o padrão financeiro e o conforto do filho, recebe, em sua casa, no turno vespertino, homens que pagam por sexo. Tal fato não comentado por sua vizinhança e nem notado pelo filho.   

O VAZIO DA EXISTÊNCIA 


Desse pressuposto, algumas coisas se destacam para o público. A primeiras delas é o quão maçante e constante pode ser acompanhar o dia a dia de alguém de forma minuciosa, ao mesmo tempo em que cria uma angústia crescente, fruto de não saber os próximos passos e/ou conhecê-los e estar aprisionado a eles. Complementando essa percepção, encontra-se a motivação por trás do vício meticuloso da rotina, a qual, em “Jeanne Dielman”, é fazer as coisas para não pensar no problema fundamental, o vazio da sua existência.  

A fotografia e o design de produção conduzem a tal entendimento. Os planos longos e silenciosos indicam o vazio que permeia a vida da personagem; a câmera estática e a escolha de enquadramentos deixam-na frequentemente sozinha e imóvel, presa em seus próprios pensamentos e decisões. O curioso é que, dentro dessa composição de tons pastéis esverdeados, temos uma representação completa de como o espaço e o tempo funcionam na sétima arte.   

Esses dois elementos são muito importantes para fixar o valor identitários de um indivíduo no escopo do processo imaginário. As 3h13 minutos de duração de “Jeanne Dielman” nos oferecem um vislumbre temporal intrigante sobre o cotidiano que se complementam com a forma como Babette Mangolte, grande colaboradora de Akerman, capta os gestos ritualísticos da protagonista e o espaço em que transita e vivência sua jornada.  

Outro aspecto que contribui para a representação do tempo e espaço é o uso da trilha sonora diegética. Com uma dona de casa que leva a maior parte de seu dia cuidando dos afazeres domésticos sozinha, “Jeanne Dielman” não tem muitos diálogos, mas não é por isso que se preenche com sons exteriores. Quando ouvimos música, é porque a personagem se propõe a escutá-la, fora isso, os sons que a acompanham são aqueles presentes no dia a dia como o ranger de uma porta, panelas sendo batidas ou os saltos da protagonista indo de um cômodo ao outro. O ritmo de suas escolhas é a verdadeira trilha sonora da trama.  

O CONTRA-CINEMA DE AKERMAN 


E então, num belo dia, toda sua rotina desmorona. Akerman constrói de forma tão obsessiva as ações milimetricamente calculadas de Jeanne, que, no primeiro ponto, fora da repetição se percebe que algo está fora de sintonia, seja pelo ponto passado da batata ou o botão abotoado na casa errada. O interessante é ver como isso era importante para personagem e como quebrar sua rotina a leva a um ponto de exaustão e de explosão da própria personalidade. Sem dúvida, um estudo de personagens riquíssimo.  

O grande mérito de “Jeanne Dielman”, contudo, é dialogar com o público contemporâneo. É possível perceber o quanto ele é um representante notório do contra-cinema descrito por Clare Johnson, afinal estamos diante de um filme que quebra padrões clássicos, tanto por sua relação espaço-temporal, quanto pela escolha de ser uma perspectiva feminina em sua concretude. Estamos diante de uma heroína falha e independente, cuja jornada é focada no cotidiano de uma mulher dita comum e que vira um caos quando um de seus gestos ritualísticos sai dos trilhos. Por isso, seu final é tão simbólico e catártico, afinal há muito dito sem que haja palavras.  

Akerman oferece significado e reminiscência a rotina feminina, dando lhe voz e vez. E é isso que a torna uma produção disruptiva e singular, uma obra-prima.