Há um filme do amazonense Rafael Ramos chamado “Formas de Voltar Para Casa” que explora de forma reflexiva, melancólica e catártica — dado as sensações pós-sessão — as maneiras como podemos retornar ao que consideramos casa. Pensei muito nele enquanto, em momentos distintos, refletia sobre “A migração silenciosa” de Malene Choi e “Retorno a Seul” de Davy Chou. 

Nos dois filmes estamos diante de jovens de origem sul-coreana criados na Europa que decidem partir em busca dos ancestrais biológicos. A jornada desencadeia uma série de questões emocionais e culturais que permeiam o processo de adoção na Coréia do Sul e o que tem motivado essas pessoas a buscarem conhecer sua história de nascimento. 

Não intencionalmente, é curioso que ambos se complementem e apresentem facetas dualistas sobre esse procedimento. Motivada por esses insights, listo três desdobramentos em que “A migração silenciosa” e “Retorno a Seul” se atravessam. 

Guerra na Coreia e a adoção

Segundo a Anistia Internacional, a Coreia do Sul é considerada “o maior fornecedor” de bebês para a adoção. Desde os anos 1950, período da Guerra da Coreia (1950-1953), estima-se que aproximadamente 200 mil crianças foram adotadas por famílias estrangeiras. Tais informações suscitam outros fatos importantes como a alta taxa de abandono de crianças e o baixo número de adoções dentro do próprio país. Entre os fatores que desenham esse cenário de rejeição encontra-se a tríade nacionalismo, patriarcado e confucionismo. 

O primeiro fator abriu margens para que o país fosse homogeneamente étnico, ensinando em suas escolas o mito de uma “raça pura”, como indica o artigo de opinião do sul-coreano Se-Woong Koo publicado no New York Times, rejeitando estrangeiros e a miscigenação oriunda da união entre estes e coreanos. Uma prova disso são as notícias divulgadas recentemente de mulheres que vão ao país em busca de homens que conhecem pela internet e se assemelham a ilusão que assistem nos doramas, as experiências tem se mostrado o oposto do que esperam. 

Nesse caminho, o machismo também é um fator que predomina na cultura coreana, tal qual a ocidental. As mulheres precisam ser submissas aos homens, aqui incluindo pai, esposo, irmão e filho mais velho; sofrem ainda as pressões sociais e familiares em relação à maternidade, tendo, por exemplo, que abrir mão de seus empregos para cuidar dos filhos, da casa e dos familiares. Nesse processo, são as mães solteiras que recebem os maiores impactos, uma vez que os nascimentos fora do casamento são reprovados com violência e as mulheres pressionadas a abortar ou abandonar os bebês. Quando isto não acontece, tanto elas quanto as crianças são estereotipadas e discriminadas por toda a vida. 

Parte dessa opressão encontra abrigo no confucionismo, o qual promove valores explicitamente patriarcais e conservadores. A ideologia tem como um dos seus propulsores a valorização dos ancestrais; dessa forma a criação de um filho que não carregue a mesma linhagem sanguínea é motivo de vergonha e de exclusão social. Diante desses fatores, compreende-se a migração dos bebês por via de adoções e como os filmes abordam o processo de retorno ao país de origem. 

A romantização das origens

Em “Retorno a Seul”, Freddie (Park Ji-min) passa por vários tipos de conflito: de gênero, geracional e cultural. Criada na França, ela tem dificuldade em compreender e aceitar as decisões do pai biólogo, figura progenitora que ela tem contato na Coreia. Ao perceber que não é aquilo que imaginara como indivíduo e figura masculina de referência, a protagonista se distancia. 

Já em “A Migração Silenciosa”, Carl (Cornelius Won) sonha secretamente em conhecer as próprias origens, projetando até mesmo imagens de uma família coreana ao sentar à mesa com seus país nórdicos. O rapaz parece um peixe fora d’água no habitat em que se passa a narrativa, o que é salientado pela ausência de toques e momentos de intimidade com a família adotiva. Diferentemente de Freddie que é resoluta e externa os seus incômodos chegando a ser indelicada, Carl não externa o que pensa e deseja. O roteiro sugestiona como ele se sente por meio da fotografia e da ação de terceiros, o maior exemplo disso é que só sabemos que ele almeja voltar a Coreia quando sua mãe questiona se gostaria de ganhar uma viagem de presente. 

No âmbito geral, os dois personagens nutrem o desejo de conhecer suas origens. No filme francês, esse anseio se concretiza, causando uma ruptura na fantasia e mudando a rota da vida da protagonista. Carl fica no mundo das ideias, por isso permanece conjecturando e romantizando o reencontro. 

Ausência de pertencimento

Todas essas questões se tornam mais latentes dado o sentimento de não-pertencimento que acompanha os personagens. Freddie projeta na dança, no encontro com estranhos e homens mais velhos e no descompromisso o sentimento de abandono que carrega no peito. A personagem tem dificuldade de confiar e de ter um local em que se sinta plena enquanto indivíduo. Seus incômodos, ainda que suplantados por sua altivez, emanam um desconforto real, bem pontuado pelos closes feitos em seu rosto em diversas cenas, como se fosse uma estranha, mesmo que o texto vá na direção contrária. 

Carl, por outro lado, parece um estranho no ninho. Ele não tem proximidade com os pais adotivos e nem tem amigos próximos que sejam da mesma etnia, o que lhe torna uma pessoa cada vez mais fechada em si. Seu corpo está constantemente retraído e ele esconde seu desejo de fugir do local em que mora. O protagonista de “A migração silenciosa” é taciturno como o próprio nome do filme indica, parece alheio e sem condições de reagir ao que acontece ao seu redor e a maior prova disso é o momento em que sofre uma injúria racial por parte de um familiar e se mantém inerte, precisando a câmera movimentar-se para que o desconforto sentido por ele cause alguma percepção a mais no espectador. 

De certa forma, esse vazio carregado por eles é o que os impulsiona a querer voltar ao seu país de nascimento e não desistir de saber ao menos o nome de suas mães. Ainda que para isso precisem humilhar-se ou enfrentar um sistema de adoção desatualizado e corrupto. Ambos os diretores exploram visualmente essa sensação caótica de ausência que os permeia por meio de enquadramentos, trilhas sonoras e outros recursos que possibilitam chegar ao público tudo aquilo que  não elaboram verbalmente. 

Junto a este fato, é interessante a escolha de Malene Choi em brincar com gêneros em “A migração silenciosa” tornando o drama de Carl uma ficção científica. A diretora usa a obsessão do rapaz por rochas e buracos na terra para criar um simbolismo em torno da falta de acolhimento que ele sente entre as pessoas que o rodeiam, sanando essa ausência por meio da fantasia geológica. O que justifica não haver fotos em seu quarto, mas ter um meteorito a qual ele observa constantemente. 

Todos esses elementos me fizeram refletir sobre como a prática de adoção da Coreia do Sul afetou a jornada de vários jovens e a busca por suas origens. Embora esses dois filmes o explorem com maior veemência, é possível notá-lo sendo abordado de forma mais leves em “A Caminho do Céu” e “Com Carinho, Kitty”. São os caminhos que nos levam para a casa.