Alerta: tentamos, mas o texto ficou insaciável de spoilers!

“Insatiable”, série da Netflix, entrou no catálogo na última semana acompanhada de uma repercussão negativa. O trailer liberado pelo serviço de streaming foi acusado de gordofobia e reuniu centenas de pessoas que assinaram uma petição para que a série fosse cancelada antes de estar disponível para o público.

Petição à parte, a série foi liberada e é um dos maiores desastres dos originais Netflix, que vinha apresentando, em campo seriado, programas conceituados e interessantes, capazes de concorrer e ganhar de fortes produções da TV Americana. Não a toa, o índice de avaliação da série no Rotten Tomatoes é de 11%, e, a produção tem ganhado críticas negativas de veículos como New York Times e The Guardian.

Para além do preconceito exposto no trailer e do pedido de Lauren Gussis, criadora da série, e de todo o elenco para que se assistisse a série antes de julgá-la, o produto que se tem é confuso, mal estruturado e equivocado. Talvez não haja melhor termo para definir “Insatiable” que equivocado. Por isso, elencamos os sete equívocos mais fortes cometidos por Insatiable:

1 – Preconceitos Propositais

Já citamos aqui as acusações de gordofobia que o trailer de “Insatiable” recebeu. Entretanto, este não é o único insulto a minorias ressaltado na série. Há diversos momentos em que os discursos e as situações que o roteiro tenta vender, além de serem bizarros, são preconceituosos e tem como objetivo arrancar risadas, que não vem nem involuntariamente. É estranho pensar isso, já que, apesar da série ser uma comédia coming-age, não há nenhuma cena memorável em termos de humor, especialmente ao pensar nos gatilhos utilizados para desenvolvê-lo. No início da trama, Noonie, uma das poucas personagens bem estruturadas da produção, tenta fazer piadas sobre homossexualidade apenas para continuar presa ao armário, o que é utilizado pela série como uma forma de alívio cômico. Em nenhum momento, porém, as tiradas que ela conseguem surtir o efeito desejado.

Xenofobia, misoginia, homofobia e gordofobia são alguns dos casos encontrados para desenvolver o humor, mas acabam apenas criando momentos de vergonha alheia e/ou raiva. Durante todos os 12 episódios, a gordura é utilizada para causar risos e constranger, afinal, todos os comentários e situações relacionadas à questão só servem para deixar o espectador com a sensação de procurar um sentido para aquilo. E isto se torna evidente nas primeiras cenas do episódio-piloto. A relação entre Patty e o mendigo é constrangedora, a começar pelo motivo da troca de socos e o que ela ocasiona. É desafiador desatrelar o soco ao fato de Patty não estar nos padrões e a desculpa para o feito ser uma barrinha de chocolate. Talvez em outro momento, como nas produções adolescentes oitentistas e até mesmo em Meninas Malvadas (quem não lembra que Regina George descobre o plano de Cade por conta de uma barrinha de chocolate?), essa justificativa pudesse ser aceita, mas hoje, ela soa como deveria ter sempre soado: preconceituosa.

E que me perdoem os vigilantes do peso, mas é difícil acreditar que alguém seque tanto em tão pouco tempo. Mais ilógico ainda é comprar a ideia que alguém emagrece e fica irreconhecível para as pessoas que estavam acostumadas a conviver com ela.  E isso leva a outra questão que é a escolha de elenco. Apesar de aparentar receptividade, assim como em “Com Amor, Simon” e “Step Sistes” – outro original Netflix carregado de preconceitos velados -, é apenas uma maquiagem para esconder que seus personagens principais pertencem a uma classe padrão privilegiada. E é neste ponto que o texto da série, carregado de preconceitos, se torna aproveitador e mesquinho. Podemos começar citando, o body shaming9 de Debb Ryan, em tempos que produções badaladas como “This is Us” e “Dietland” são compostas por atores gordos, a Netflix poderia ter investido melhor. E já que citamos “Com Amor, Simon”, não é uma quebra de padrões ter personagens asiáticos que se auto-depreciam quebrando o estereótipo de asiáticos nerds. Pelo contrário, a postura de Dixie e seu diálogo com Choi renegando sua ascendência possuem um tom xenofóbico e misógino que não é engraçado; é deslocado.

“Insatiable” utiliza também discursos polêmicos para alimentar seus plots. O problema é que fica por isso mesmo, não há solução ou desenvolvimento. As polêmicas são literalmente jogadas para liberar gatilhos e nutrir uma trama ruim, confusa, que brinca de ser desconstruída por satirizar preconceitos, quando, na verdade, os aproveita de maneira egoísta e irregular. Nenhuma das polêmicas consegue ser usada pelo roteiro nem mesmo por 30 minutos de episódio, dando um ritmo errático e enfadonho à construção da série.

2 – Sexualidade

Entre todos os tabus empregados por Gussis, esse é um dos que mais apresenta um ritmo constante durante a projeção e, portanto, se mostra o tema mais bem discutido. Entretanto, até mesmo ele é utilizado de maneira equivocada.

A construção de Gussis tem seus pontos fortes quando apresenta as dúvidas de Noonie quanto a sua sexualidade e a relutância dela em aceitar-se. O arco da personagem é contínuo e consegue oferecer alívio cômico e dramaticidade, em sua relação com o pai, Choi, a mãe de Patty e Dee. E por falar em Dee, é interessante em meio a tantos atropelos, irrealidades e falta de noção, ter uma personagem negra, lésbica e sincera. Quando todos sofrem de algum tipo de insatisfação quanto a sua vida, Dee, apesar de pouco explorada, é a pessoa mais sensata do universo de Insatiable. A série poderia muito bem ter sido projetada sobre Noonie que tem as relações mais saudáveis – com exceção de seu envolvimento tóxico com Patty, mas que ela acaba se tocando disso – e o desenvolvimento mais claro.

Neste quesito de desenvolvimento, relacionamentos e sexualidade, a relação entre os Bobs explicita o equívoco da série. Apesar de ter mais acertos do que erros ao construir uma adolescente homossexual, quando isto se aplica a vida dos adultos, cria-se um conflito que tem ganchos e reviravoltas atrativas, mas que não deixa de soar um tanto apelativo ao público. Como se não bastasse uma protagonista bipolar, a ideia que ressoa é que há dois Bob Barnard. Sendo que um deles aparece na metade da série, quebrando toda a construção do personagem até ali. Até o episódio 08, as aspirações de Barnard parecem evidentes, mas ele parece esquecer tudo logo no episódio seguinte e se transforma numa versão fútil de si mesmo, esquecendo até mesmo de sua família.

Bob Armstrong também não foge dos equívocos. Mesmo que suas aspirações sejam claras constantemente, anuviando nos episódios finais, seus questionamentos quanto a bissexualidade são ofensivos e utilizados de forma infantil. Há uma discussão envolta da ausência de personagens bissexuais em produções seriadas e Insatiable usa esse “tabu” de uma maneira trash e piegas, apelando para o senso comum ao comparar bissexuais com seres inexistentes e apoiando veladamente o preconceito.

Outra abordagem que destaca bem como o roteiro puxa temas como gatilhos e os ignora é o diálogo entre Patty e uma mulher trans no banheiro. As duas têm uma conversa esclarecedora, trazendo um ângulo emergente e importante para a discussão sobre o corpo, mas que é banalizado em menos de dois minutos, novamente sem causar humor nenhum.

3 – Incentivo à briga entre mulheres

Em tempos que o feminismo tem conquistado mais adeptas e a união das mulheres tem se tornado uma realidade crescente, colocar desavença entre mulheres como um dos plots principais de um produto voltado para adolescentes é duvidoso e aterrorizante. Mesmo o roteiro colocando uma tentativa falha de desconstruir o glamour do universo dos concursos de miss, essa seria uma boa oportunidade de tirar do clichê competitivo entre as garotas e apresentar um novo olhar sobre esse universo. Praticamente, todas as personagens femininas de Insatiable tem tretas entre si e, quase todos os casos, por motivos fúteis e esquecíveis ou, pior ainda, sem motivo aparente como Coralee e Etta Mae, que possuem uma tensão, que nunca fica explicita, a não ser por serem duas mulheres que tem inveja da vida que a outra leva. Algo que não se fundamenta mais, ou não deveria, nas produções contemporâneas.

4 – Banalização do Aborto

A legalização do aborto tem sido uma das discussões constantes na América do Sul e é um assunto delicado no mundo todo. Mais uma vez apontamos o público para quem a série é voltada e a forma como o roteiro traz essas questões controvérsias e não toma cuidado em como as desenvolve. Existem motivos para além de estéticos e egoístas – como não ouvir o que se quer ouvir após uma relação sexual – que levam a mulher a tomar essa decisão e que são simplesmente engolidos e ignorados em Insatiable.

Patty é irresponsável, egoísta e mal resolvida, por isso é insaciável, mas não torna compreensível até que ponto isso aplaca a polemica dela abortar ou não. É interessante o ponto de vista de Armstrong sobre a questão, já que toma o posicionamento que homens e pessoas de fora deveriam assumir. Entretanto, são os motivos de Patty que contribuem para alimentar argumentos vazios quanto ao aborto. Somado a isso, o arco que a série toma a partir da escolha dela auxilia a banalização do tema. É perigoso ver como o assunto é simplesmente jogado, usado para gatilho e depois ignorado, como se nunca tivesse sido posto na roda. É mais ainda perigoso se pensar o público para o qual a série foi formulada.

5 – Questões com o Corpo

A proposta da série traz essa questão com o corpo como guia. Ou pelo menos essa era a ideia que o trailer vendia. Patty acredita que por ser magra a vida está começando agora e culpa todos os seus problemas e sua insatisfação no fato de ter sido gorda. Como se o peso e a perda dele pudesse transformar o seu caráter, que é péssimo independente de quantos quilos seus pés tiverem que sustentar.

A verdade é que apesar da sinopse da série vender a vingança da protagonista, o roteiro não oferece informações suficientes para saber quem era Patty quando gorda e o que faziam com ela. A não ser que ela sentia inveja das outras meninas e de seus corpos, isso se evidencia nas primeiras frases de Insatiable. Patty é uma comedora compulsiva e a série não consegue trabalhar bem os aspectos desse distúrbio alimentar que é tão problemático quanto bulimia e anorexia, mas que é ignorado e menos abordado que os outros já citados.

E se isso não convence dos problemas da série, enganar o público com um episódio de título “Magreza não é mágica”, quando ao seu término afirma exatamente o contrário é, no mínimo, vergonhoso. Especialmente, se olharmos outras produções como “My Mad Fat Diary”, que é voltada para o mesmo público, tem uma protagonista gorda, sem fat-shaming e lida com questões de auto-aceitação do corpo mostrando como qualquer adolescente passa por essa fase, independente de ter alguns quilos a mais, ou não.

6 – A Falsa Acusação de Assédio Sexual e Pedofilia

E, por fim, em tempos de movimentos como #MeToo e Time’s Up, uma série idealizada por uma mulher e roteirizada em grande parte por mulheres colocar uma falsa acusação de pedofilia e assédio sexual feita por uma mãe não é engraçado, é constrangedor e equivocado de diversas maneiras. É esse tipo de ”humor” que não contribui para o sustento das discussões e, como muitas coisas tentam nessa produção, banalizam as denúncias das vítimas e dão fôlego aqueles que preferem acreditar na inocência absoluta dos acusados.

Para piorar a situação, a acusação é esquecida durante todo o resto da série. Como se alguém acusado de pedofilia pudesse continuar andando com um menor de idade e lidando com atividades que envolvem um número elevado de crianças e adolescentes, sem impedimentos ou, no mínimo, manchas na reputação. Além de equivocada, a série é irresponsável.

Gostaria muito que o trailer de Insatiable estivesse enganado e a série conseguisse calar os insatisfeitos, como Debby Ryan e companhia tentaram fazer acreditar, entretanto, ele só provou que o que está ruim, pode sim ficar pior e se afundar em uma peça de equívocos vestidos de humor.