Com uma vida que é quase uma sucessão de combates – contra a duríssima disciplina e as longas horas de estudo solitário do piano, contra as pressões de se pôr à prova cada vez mais como instrumentista de alto nível, contra os relacionamentos desfeitos pela dedicação à música e, principalmente, contra as lesões físicas, que desde o início atrapalharam a carreira do pianista e regente João Carlos Martins, uma das glórias da música clássica nacional, João, o Maestro é um filme surpreendentemente de pouco fôlego.

Não que seja um filme ruim – Rodrigo Pandolfo e Alexandre Nero, que vivem o músico na juventude e na maturidade, encarnam muito bem as idiossincrasias do pianista, e a produção esmerada, que tem de dar conta de momentos importantes da vida do músico em diversas cidades pelo mundo (São Paulo, Berlim, Paris, Los Angeles e Nova York entre elas) tem vários acertos, sobretudo a fotografia, com seus vermelhos e marrons vívidos –, mas João se limita a dar o recado de maneira de maneira básica, convencional, com pouco ou nada da paixão tão pulsante em seu biografado.

Dirigido por Mauro Lima, de Meu Nome Não é Johnny (2008) e Tim Maia (2014), duas incursões bem-sucedidas no terreno da biopic, João, o Maestro narra em pinceladas rápidas os acontecimentos da vida de João Carlos Martins: a infância insular, em que tudo o que parecia existir além do piano era a admiração quase secreta do menino pelo futebol; os primeiros recitais consagradores no Brasil, no Uruguai e nos Estados Unidos (“um talento assim só surge de 100 em 100 anos”, diria a grande pianista brasileira Guiomar Novaes); o lançamento do primeiro Concerto para Piano de Alberto Ginastera, com a famosa Toccata, cujas imagens marcantes de um João como que possuído, martelando seu instrumento, gravariam seu nome na história do piano; os abundantes problemas físicos, causados tanto pelo esforço absurdo ao tocar quanto por uma sequência de reveses (uma perfuração no braço após uma queda numa partida de futebol; uma lesão no cérebro após um assalto na Bulgária, em que João foi agredido pelo ladrão com uma barra de ferro); e a monumental força de vontade que o levaria a retomar a habilidade ao piano e completar seu pioneiro ciclo de obras de Bach (aliás, já passa da hora de João ser reconhecido como o maior intérprete do compositor alemão na segunda metade do século passado, ao lado do canadense Glenn Gould – e seus LPs da década de 1960 precisam urgentemente voltar ao catálogo no Brasil).

É ao se focar na música sublime do homem que o filme tem seus maiores acertos – contra os diálogos artificiais e didáticos demais do roteiro (“é engraçado, as mãos parecem duas pessoas diferentes, que não se conhecem”; “alguns dicionários definem obsessão como uma perseguição diabólica” – metáforas que não são ruins, mas são mal trabalhadas no roteiro e na declamação dura de alguns dos atores), João, o Maestro dedica longos minutos da projeção às fantásticas gravações de JCM e às esforçadas dublagens de Pandolfo e Nero. O trabalho do elenco é desigual – os três atores que vivem o pianista são bem dirigidos e ocasionalmente inspirados (Pandolfo, que vive os principais dramas da vida do pianista, tem a missão mais difícil e se sai muito bem; há ainda Davi Campolongo como o infante Martins), mas o elenco secundário, à exceção de Giulio Lopes, como o pai de João Carlos, José, e Alinne Morais, como sua esposa atual, Carmen, vai do competente ao vacilante.

O maior problema é mesmo a narrativa desordenada, que não aproveita a contento todos os dramas da vida de Martins, nem vai fundo no homem por trás do artista – nesse sentido, Tim Maia se saiu melhor, principalmente graças à atuação vulcânica de Babu Santana. Controvérsias como o seu envolvimento na política, quando apoiou a campanha de Paulo Maluf ao governo de São Paulo no início da década de 1990, experiência que lhe valeria diversos processos judiciais e uma condenação por fraude fiscal em 2003, não aparecem na trama; nem tampouco suas convicções mais profundas como artista, como a paixão por Bach, de quem foi um dos principais responsáveis pela “reabilitação” junto à crítica e ao público e pela justa devolução ao topo, ao lado de Beethoven, Mozart, Brahms e Mahler, numa época em que o compositor alemão era considerado uma relíquia de priscas eras, com pouco a dizer ao panorama musical moderno.

Fica um retrato razoavelmente bem-feito, cheio de música (há tantas performances que o filme quase poderia ser considerado um musical) e uma introdução acessível à trajetória de um dos maiores artistas já produzidos em solo brasileiro, das poucas figuras da música clássica no país a transcender o círculo restrito dos frequentadores de concertos (um panorama que lamentavelmente continua inalterado) para servir de exemplo e inspiração a milhares de jovens musicistas no Brasil.

Para ir mais fundo na vida de Martins, o documentário francoalemão Die Martins Passion (exibido na TV Cultura como A Paixão Segundo Martins e disponível no YouTube) apresenta de maneira mais completa a obra e o pensamento do homem, com uma fartura de depoimentos do próprio. Mas melhor do que qualquer filme ou livro é ouvir suas gravações, muitas delas postadas na íntegra no YT – e, quem sabe, a partir delas, descobrir a obra de Bach, ou os esforços de outros bravos expedicionários brasileiros da seara erudita, como os pianistas Nelson Freire (tema do ótimo documentário Nelson Freire [2003], de João Moreira Salles) e Arthur Moreira Lima, o violoncelista Antonio Meneses (também homenageado em um especial da TV alemã, que volta e meia passa no canal a cabo Arte1) e tantos mais. João, o Maestro, não é o filme que João Carlos Martins merecia, mas fico feliz que ele afinal tenha sido feito.