HarryPotterPunheteiro, tarado_carioca, Caiopentelhudo: essas são algumas das alcunhas cheias de cor que escondem os espectadores anônimos de Simone, camgirl no Chaturbate. Simone estuda para se tornar defensora pública, enquanto faz uma graninha com suas transmissões sexuais nas horas vagas.

Mas logo essas duas facetas começam a se chocar. Como futura defensora, Simone, uma mulher negra, precisa transitar pela bolha esclarecida (e majoritariamente branca) do seu curso, conforme questões sobre como tornar a sociedade mais justa pipocam a torto e a direito. Seria o punitivismo um caminho válido? Faz sentido combater a opressão sistemática aumentando o poder de repressão estatal? Sabe, as questões de sempre.

Atendendo a casos sucessivos de violência doméstica, Simone confessa: “às vezes acho que o que a gente tá fazendo aqui não serve pra nada”. Ao mesmo tempo, ela desenvolve um interesse cada vez mais intenso e perigoso pelo BDSM, que logo marca presença nos seus streams.

A gente fica com a impressão de que esse mergulho no sadomasoquismo (norteado pelos conselhos sensatos de uma amiga experiente, frequentemente ignorada por Simone) desponta a partir da raiva. Estaria ela tentando compensar a injustiça do mundo com fantasias de poder e retaliação (como quando ela impõe sua dominação sexual a uma amiga branca)?

Mas o que dizer, então, dos impulsos auto-destrutivos aos quais Simone logo dá vazão? Culpa? Raiva diante da própria impotência? Ou algo mais?

Nova faceta de um velho tema

Laureado no Festival de Locarno deste ano, “Regra 34” é o novo longa de Julia Murat, cujo último filme de ficção foi “Pendular”, ainda em 2017. Ali, os poderes reguladores que recaem sobre o desejo já apareciam como tema. Só que “Pendular” tinha um sério problema: ao enfocar seu filme em um casal de artistas de classe média alta, todos os questionamentos sobre monogamia e não-monogamia se tornavam um trâmite irritante à la white people problems.

Não é o caso aqui. Simone é uma figura complexa, contraditória, real – materializada no corpo de Sol Miranda que, encarnando a protagonista de peito aberto, se coloca na linha de frente da produção. Mais do que psicoanalisar Simone, o filme está interessado na teia de poder que permeia todas as suas relações.

Por exemplo: se Simone cede, por um lado, aos desejos de homens anônimos, dando seu corpo a ver para o deleite alheio, por outro, ela parece ser daquelas que acreditam na mistura entre prazer e trabalho. Isso porque temos a impressão de que Simone também usa sua plataforma online para explorar a própria sexualidade – constituindo, assim, um equilíbrio frágil e nem um pouco bem resolvido entre desejo e poder, liberação e opressão.

Complicando o meio de campo

Evitando o didatismo, o filme não apresenta nenhuma tese unívoca sobre a resolução dos ciclos de violência. Ele prefere, antes, complicar o meio de campo, oferecendo imagens e sentimentos conflitantes – por exemplo, no corte que vai do depoimento de uma vítima de violência doméstica (interpretada por MC Carol) para Simone, colocando em prática suas vontades sádicas.

O título deriva de uma das máximas internéticas fundamentais: se tal coisa existe no mundo, então há um pornô sobre ela na internet. O que talvez nos faça pensar que o filme de Murat seja um desfile de depravações e bizarrices envolvendo orifícios. Não é o caso. Antes, a diretora está interessada em situar sua trama na fronteira sempre fluida entre desejo e poder.

Tudo parece culminar em uma transa violenta entre Simone e um amigo (devidamente transmitida no Chaturbate). Aqui, a coisa chega a um nível tão desconfortável que a senhorinha sentada do meu lado teve que abrir o celular pra desviar a atenção da tela – o que geralmente me incomodaria, mas dessa vez me pareceu compreensível.

Não que o filme descambe pro gore cronenbergeano, longe disso (apesar de uma cena anterior envolvendo queimaduras de cigarro ter me feito pensar na Debbie Harry em “Videodrome”). Mas há um jogo psicológico em cena aqui, e as reverberações são sentidas na plateia. A vibe pesa.

Uma vez que nos percebemos sob o jugo de forças invisíveis agindo sobre nossos corpos, o que fazer? Em dado momento, Simone dispara: “e se eu estiver reproduzindo o que a indústria sexual me ensinou, e daí? Sinto muito se meu tesão não é suficientemente político pra você”. Se você sentir um vento gelado e ouvir um som do além, não se preocupe: é apenas Foucault urrando em seu túmulo.

Não espere, por fim, conclusões claras e coerentes. Murat encerra seu filme com o close de um rosto. Mas esse rosto – olhando para a câmera diretamente, oscilando entre o ódio, o medo e o tesão – é uma interrogação, não uma resposta.