Em Pulp Fiction de Quentin Tarantino, o personagem Vincent Vega (interpretado por John Travolta), dizia ao seu amigo e fornecedor de drogas que “não se mexe com o automóvel de um homem”. Vincent estava reclamando sobre como seu carro foi arranhado por um sujeito não identificado, e sobre como ele queria pegar o cara bem naquele momento… Por ser um assassino de aluguel, ele sabia do que estava falando e acabou fornecendo a nós, o publico, uma valiosa lição – se você vai danificar o carro de algum desafeto, é bom saber tudo sobre ele antes.

Os bandidos do filme John Wick: De Volta ao Jogo cometem um duplo erro: eles não só roubam e danificam o carro de um homem, mas acabam também matando o seu cachorrinho! John Wick (vivido por Keanu Reeves) estava na dele, ainda experimentando luto pela morte da esposa, e conhecendo a adorável cadelinha beagle que a falecida lhe deixou de presente. Num dia, ele sai para passear com ela no seu carrão e alguns sujeitos exibem um olho gordo em relação ao automóvel. O primeiro sinal de que há algo incomum a respeito de John Wick ocorre quando ele demonstra compreender o idioma russo que os caras estavam falando.

Naquela mesma noite a casa de Wick é invadida, seu cão é morto e ele é nocauteado. Quando volta a si, seu carro sumiu. O problema, para os ladrões, é que Wick costumava ser um assassino a serviço da máfia russa. O mafioso Viggo (Michael Nyqvist), cujo filho Iosef (Alfie Allen) arquitetou o roubo do carro, conhece Wick e tem noção de como o filho acabou cutucando a proverbial “onça com vara curta”. Enquanto Viggo coloca um contrato milionário pela cabeça de Wick, este retorna ao submundo que havia deixado para trás, mas agora ele não tem nada a perder nem nada melhor para fazer.

Com este projeto, o ator Keanu Reeves faz uma tentativa de se juntar ao clube dos heróis de ação maduros, embora aos 50 anos ele ainda seja bem mais jovem do que outros sócios desse clube como Liam Neeson e Denzel Washington. E é bom ver o astro que fez Caçadores de Emoção (1991), Velocidade Máxima (1994) e a trilogia Matrix voltar ao gênero com entrega e força. O papel de John Wick é físico, pois Reeves fala bem pouco e tem poucas cenas de emotividade, e isso ajuda o ator, não exatamente conhecido pela expressividade. Mas o tempo fez bem a Reeves: seu rosto está mais forte e sua presença em cena, mais intensa, embora em alguns momentos ele demonstre até um pouco de vulnerabilidade. Esses elementos dão mais peso ao personagem Wick e o tornam interessante – e até o medo que alguns personagens têm dele rendem umas risadas.

O diretor Chad Stahelski faz sua estreia na função com este filme, mas é um dublê veterano de muitas produções – Stahelski, inclusive, foi dublê do herói Neo em alguns momentos da trilogia Matrix. O diretor novato faz um trabalho bastante estiloso, investindo em sombras na fotografia e no mundo com tons noir no qual vivem Wick e os demais personagens. Nenhum deles é muito profundo e todos os atores interpretam tipos: o herói caladão, o mafioso impiedoso e seguidor de um código, a femme fatale… Porém, esses tipos são vividos por um elenco sólido que atua de forma competente – estão no filme Willem Dafoe, John Leguizamo, Ian McShane e Adrienne Palicki, entre outros.

Aliás, um dos aspectos mais curiosos do filme é a forma como mostra o submundo do crime com suas regras e detalhes. Todo mundo parece se conhecer – em dado momento até um policial reconhece John Wick – e há o hotel onde eles se reúnem, onde todos os hóspedes precisam seguir um conjunto de diretrizes. A equipe da limpeza, vista duas vezes durante a história, também parece estar sempre a postos para limpar a bagunça de indivíduos como John. Esses pequenos detalhes deixam o filme mais curioso e envolvente, pois a sensação é de estarmos adentrando num universo à margem da sociedade “real”, um ambiente com uma longa história pregressa.

Se John Wick não tem muita profundidade nem uma história densa ou inovadora, o filme mais do que compensa isso investindo no espetáculo de ação. Stahelski demonstra domínio completo nesse quesito, deixando as lutas e tiroteios ocorrendo em frente às câmeras e sem sucumbir ao péssimo costume moderno de fazer cortes excessivos nas cenas de ação. A cena do tiroteio na boate, por exemplo, é fluida e cheia de energia, sendo um dos pontos altos do longa. Como resultado, John Wick é um filme de ação à moda antiga, valorizando as coreografias dos atores e dublês e sempre deixando clara a presença de Keanu Reeves em quase todas as cenas. E assim acabamos conhecendo um pouco da personalidade do herói nas lutas: sempre com uma pistola na mão, Wick é objetivo e finaliza vários oponentes com tiros na cabeça sem erros – muitos dos vilões nem têm chance de encostar nele…

A violência é alta, o humor é muitas vezes negro e o filme é sempre envolvente e divertido, a ponto de no final termos uma espécie de homenagem à luta na chuva do desfecho de Matrix Revolutions (2003). Ao término da sessão, o espectador acabou tendo uma aula de selvageria: muitos dos personagens falam sobre os códigos e as regras que regem o ofício dos matadores de aluguel, porém eles servem apenas para disfarçar a hipocrisia daquele mundo. John Wick passou um tempo longe dele, por isso não compactua mais com aquela hipocrisia. Roubar seu carro e matar seu cão foram atos de selvageria cometidos por pessoas que deveriam conhecer seu lugar. Ele então responde à altura. E o espectador se diverte com o massacre subsequente.

Massacre que poderia ter sido evitado se os bandidos do filme tivessem prestado atenção nas sábias palavras de Vincent Vega. Afinal, o cinema também serve para instruir.

Nota: 7,5