Em uma pequena sala com pouco mais de 20 pessoas, Maria Flor foi posicionada em uma cadeira a frente, com três focos de luz ao seu redor, enquanto o resto da sala estava mais atrás, no escuro, assistindo o que estava acontecendo ali naquele pequeno palco. Foi nesse clima intimista que ela contou a sua primeira memória de infância com o cinema, quando ia ao cinema drive-in com seus pais mesmo sem ter a idade permitida para estar ali. Naquela mesma época assistiu ao seu primeiro filme de animação, Fantasia (1940) lançado pela Walt Disney Pictures, que até hoje a deixa impressionada. Do encantamento que sentiu quando menina, hoje, ela reflete sobre como o cinema é capaz de criar mundos fantásticos e fazer o público acreditar naquilo, vendo beleza na estética criada mesmo que não compreenda a razão daquilo. “Eu não entendia nada do que tava acontecendo ali com o Mickey, mas era tão lindo que eu fiquei encantada”, lembrou.

Também na infância veio o seu primeiro contato com um set de filmagens quando o seu pai, técnico de som, a levou para o set de Lua de Cristal (1990) para que pudesse ver a Xuxa. Mas o propósito de ver a “Rainha dos Baixinhos” logo foi substituído pela curiosidade de observar um monte de gente andando de um lado para o outro com cabos, microfones, câmeras e ela se perguntar como tudo aquilo que estava acontecendo ali ia se tornar um filme.

Desde então, o cinema passou a ser uma de suas paixões por representar muitas das grandes experiências humanas na vida com tanta emoção e identificação. Como lembra do quanto chorou com o coração partido ao assistir Meu Primeiro Amor (1991) e do impacto que sentiu ao mais tarde ver Titanic (1997), com efeitos visuais grandiosos e aquela história de romance que termina com uma grande tragédia. Essa capacidade do cinema de retratar tão verdadeiramente as emoções humanas e nos fazer acreditar naquela realidade criada foi o que fez Maria assistir Titanic outras 14 vezes e se emocionar em todas elas. “Eu sabia que o navio ia afundar, o Jack ia morrer e a Rose ia ficar ali gritando por ele mas eu queria ver e sentir tudo aquilo de novo”, disse a atriz.

E essas histórias de amor constantemente retratadas nos filmes,  principalmente as comédias românticas preferidas da atriz como Um Lugar Chamado Notting Hill (1999) e Quem Vai Ficar Com Mary? (1998), também a fizeram moldar sua visão do que seria o amor romântico. Visão que mais tarde foi confrontada pelo filme Amor (2012), com a demonstração da crueldade que é assistir a pessoa que você ama sofrer e definhar. Este filme do diretor Michael Haneke ainda a faz refletir hoje sobre essa parte tão real e difícil do amor que não aparece nas comédias românticas. Essa multiplicidade de visões de um mesmo tema tão natural ao ser humano faz com que o cinema continue surpreendendo e criando identificações com as nossas próprias memórias ou expectativas.


“Filme Ensaio” é o primeiro longa de Maria Flor na direção de cinema

Em meio a essa lembrança da relação com o cinema como espectadora, Maria lembrou da sua primeira vez como atriz no filme O Diabo a Quatro (2004) e como sentiu a diferença do que ela achava que fosse uma gravação e como era realmente. “Eu não tinha ideia do que eu tava fazendo, não sabia nem como me posicionar na frente da câmera”, confessou. Após anos como atriz e tendo construído a sua própria visão de como fazer cinema, ela aponta o cinema de John Cassavetes como seu ideal de produção. De uma equipe pequena, mais independente e comprometida em realizar uma obra da melhor forma possível, que foi o que tentou fazer no seu primeiro filme como diretora, o Filme Ensaio (2018) que está sendo exibido na 42a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Embora a atriz seja apaixonada pelo envolvimento que o cinema proporciona, de nos fazer acreditar verdadeiramente em histórias fantásticas como o marco E.T. – O Extraterrestre (1982) ou na existência de um casal tão real e orgânico como Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri em Eles Não Usam Black-Tie (1981), ela percebe que a nossa relação de espectador com o cinema mudou muito desde então. Aquele momento sagrado de ficar em silêncio dentro de uma sala escura, se deixar envolver por aquela história e se desconectar com o que está acontecendo fora daquele ambiente está cada vez mais raro. “Antigamente eu ia muito mais ao cinema do que eu vou hoje, que escolho a dedo qual o filme que realmente eu preciso ver lá”, contou.

Seja talvez pelas plataformas on-demand, pela conexão inseparável com o celular e a internet ou simplesmente pela falta de tempo na vida. Quem nunca viu alguém escrevendo no Whatsapp ou olhando o Instagram durante uma sessão de cinema? Para ela, a exploração de estímulos visuais e tecnologias imersivas no cinema, junto com a crescente produção de blockbusters de ação refletem o momento social de muita informação disponível e pouco tempo para sentir, refletir e apreciar as complexidades das relações humanas.

A sua reflexão final sobre os rumos da produção de cinema e outras artes, tendo em vista a situação instável da política, é de incerteza e um pouco de medo de que as possibilidades de suporte com investimento e difusão sejam interrompidas. Sua única certeza é de que  “os artistas e a arte sempre vão resistir” nessas situações, que sempre vão lutar pela cultura e buscar novas formas para continuar produzindo e compartilhando suas obras com o público.