Leitor, tenho uma revelação para lhe fazer: eu não existo. E se você assistir à série Mr. Robot, chegará à conclusão de que também não existe. Qualquer pessoa que assista aos 10 fantásticos episódios que compõem a primeira temporada deste seriado acabará se convertendo à ideia de ser apenas um fragmento da imaginação de Elliot Alderson. Fomos todos inventados por ele: “Criei você, você só existe na minha cabeça”, ele diz num momento do seu voiceover. Depois, ao se deparar com uma situação inusitada, ele quebra a quarta parede e pergunta na direção da câmera: “Você está vendo isso também?”. Elliot nos criou porque é uma pessoa à margem da realidade. Para ele não passamos de um vírus, um malware em sua mente.

Elliot é um hacker, paranoico – sempre vê homens de terno preto o seguindo no metrô – e solitário. Tem a mania de invadir perfis e e-mails de todos que conhece, e logo descobre os segredos de cada pessoa. Aliás, ele parece só conseguir se conectar com alguém depois de hackeá-lo. Ele trabalha numa empresa de ciber-segurança, a Allsafe, junto com a sua única amiga, Angela. É também viciado em morfina e tem um quase-namoro com a moça que lhe fornece a droga, Shayla.

Elliot odeia o sistema e comete pequenos atos de “justiça” usando seus dons: logo no início do primeiro episódio, o vemos lidando com um pedófilo. E não o faz por lucro: ele diz que “não dá a mínima para dinheiro”. No seu intimo, ele quer derrubar o sistema, especificamente a maior megacorporação do mundo, a E Corp. Como vemos tudo pelos seus olhos, a E Corp imediatamente se transforma na “Evil Corp” (Corporação do Mal, em inglês), que é o seu apelido para a empresa. Logo todos os personagens começam a se referir a ela como Evil Corp, e é só esse nome que o espectador escutará. Elliot então é recrutado pela misteriosa “fsociety”, um grupo de hackers que planeja um ataque devastador contra a Evil Corp. O líder da fsociety, um sujeito que só se identifica como Mr. Robot, é o Morpheus para o Neo de Elliot, e como os personagens daquela clássica ficção-cientifica, também deseja ver a Matrix cair.

O seriado, criado pelo produtor-executivo e roteirista Sam Esmail, tem como centro a atuação e a presença do jovem ator Rami Malek. Alguns podem lembrar-se do seu rosto – difícil de esquecer – de outras atrações da TV, como a série 24 Horas ou a minissérie The Pacific da HBO, ou dos filmes Uma Noite no Museu (2006) e O Mestre (2012). Em Mr. Robot ele é uma revelação, pois ao mesmo tempo em que sua presença perturba o espectador, sua atuação é cativante e traz muita humanidade a Elliot. Ele pode ser estranho, mas o telespectador se condói dele em diversos momentos e torce para que ele, de algum modo, seja feliz – o roteiro também ajuda a humanizá-lo ao lhe dar um cachorro (esse truque nunca falha!) e com a presença de Shayla (Frankie Shaw), que até consegue ser mais simpática e interessante do que parecia a princípio.

Mesmo assim, Elliot possui um lado sombrio e, como é o narrador da história, os sentimentos de estranheza e desorientação são comuns enquanto se assiste a Mr. Robot. Só a forma como o programa é filmado já causa estranheza: em meio aos ambientes “kubrickianos”, frios e com tons azulados como os da Allsafe, sempre vemos os atores posicionados na parte de baixo do enquadramento, e num dos cantos – raramente vemos um enquadramento certinho, com as pessoas posicionadas no centro. É simplesmente muito estranho ver praticamente a série toda assim: todos parecem pequenos e fora do lugar dentro dos ambientes, o que se mostra adequado para a trama. Um cenário um pouco diferente é a sede da fsociety: um velho fliperama, com cores e tons mais quentes. Porém mesmo ali, essa mesma lógica visual se aplica, e com a adição de um tom sombrio, pois as paredes são escuras. E os vídeos da fsociety – com direito a um apresentador com uma máscara que parece uma versão “milionária” do famoso anti-herói V – e o uso de música clássica, remetendo novamente a Kubrick, também trazem um senso de desorientação aos episódios.

Mas a série não é estranha apenas do ponto de vista visual. O quarto episódio da temporada, por exemplo, irrita o espectador por não avançar a trama e se concentrar no esforço de Elliot para se livrar da morfina, e uma grande parte desse segmento é gasta com as suas alucinações. É de se perguntar para quê serviram essas cenas, e o episódio parece uma enrolação (o típico filler, em inglês, aquele que serve para gastar o tempo). No entanto, só mais tarde na temporada aquelas cenas ganham uma ressonância emocional. Esmail e seus roteiristas preparam um jogo de longo prazo, e isso também é evidenciado na subtrama do jovem Tyrell Wellick (Martin Wallstrom).

Ao longo dos episódios a série estabelece um curioso paralelo entre Wellick e Elliot: ambos parecem extraterrestres – e Wallstrom consegue até superar Malek em alguns momentos no quesito esquisitice – mas estão de lados opostos do espectro social. Wellick é bem sucedido, trabalha para a Evil Corp e logo de cara diz a inesquecível fala: “Dê a um homem uma arma e ele roubará um banco. Dê a homem um banco e ele roubará o mundo”. Ao longo da temporada, seu destino se torna ligado ao de Elliot, mas até chegarmos a esse ponto ficamos sem saber por que estamos acompanhando esse sujeito instável e sua esposa (Stephanie Corneliussen), outra personagem que parece uma androide irreal.

No entanto, Esmail ainda guarda mais um pouco de desorientação para o espectador nos episódios finais. É quando o relacionamento entre Elliot e o misterioso Mr. Robot (interpretado com vigor por Christian Slater, um ator que já parecia ter sido esquecido e aqui retorna com força) chega ao ápice. Há uma reviravolta nestes episódios, uma que não é tão difícil de adivinhar caso o espectador preste atenção – e Esmail faz até homenagens criativas a um famoso filme do final dos anos 1990 que fez uso de uma reviravolta parecida.

Porém, mais interessante que a reviravolta é o que Esmail faz com ela no episódio final, capaz de deixar o público coçando a cabeça até a chegada da segunda temporada. Mr. Robot não é moralista e nem a favor do sistema, pelo contrário: nós e os seus personagens nos divertimos com o caos provocado pelos hackers. Mas ao mesmo tempo, seus roteiros inteligentemente perguntam: “Depois do fim do sistema, e aí?”. Elliot não tem uma resposta para essa pergunta, até mesmo porque para ele essa história não é real, assim como nós, as pessoas para quem ele a está contando. O maior feito dos criadores de Mr. Robot é o de hackear a mente do espectador: o estranho vira familiar, o fim do mundo vira diversão e viramos os amigos imaginários de um personagem fictício.