AVISO: O texto a seguir trará SPOILERS da primeira temporada de Mr. Robot.

O mundo ganhou uma nova data significativa para a sua história em 9 de maio de 2015: foi o dia no qual a maior megacorporação do mundo, a E Corp, foi hackeada e todos os registros de débitos de cartões de crédito mantidos pela companhia foram apagados. A economia mundial foi lançada ao caos, com desvalorização da moeda e depois blecautes de energia e até violência. Essa ação foi realizada por um pequeno grupo de pessoas, os hackers da fsociety. E o idealizador do ato foi um rapaz jovem e atormentado, Elliot Alderson. Quase sozinho, ele deu início a um processo capaz de mudar o mundo.

Aconteceu mesmo? Bem, sim, na realidade da série Mr. Robot, criação do produtor e roteirista Sam Esmail, e o programa vai a extremos para nos convencer da verossimilhança da situação. Só há um problema: Elliot, como narrador da própria história, quebra a quarta parede diversas vezes e numa dessas, na primeira temporada do seriado, disse que nós fomos inventados, que ele inventou o interlocutor para quem está narrando a história. Se ele nos inventou, então quem pode dizer que os eventos de 9 de maio não ocorreram? Afinal, nesta segunda temporada Mr. Robot deu um passo além no questionamento da realidade, e por isso acabou se tornando uma das mais ambiciosas e desafiadoras narrativas televisivas da nossa época.

Quando a segunda temporada começa, algumas semanas já se passaram após o hacking. O Presidente Obama aparece na TV responsabilizando a fsociety pelo ataque – a recriação dele, feita com computação gráfica e um dublador habilidoso, é praticamente perfeita e, vista em retrospecto, parece mais uma maneira de Esmail brincar com as nossas cabeças. No entanto, os envolvidos na ação estão em caminhos separados. Darlene (Carly Chaikin) assume o comando do grupo e não se contenta com o resultado obtido. Para ela, “ainda estamos perdendo a guerra”. Já Angela (Portia Doubleday) vai trabalhar para a “Evil Corp” (corporação do mal) para punir a companhia por um ato desastroso no passado, mas descobre ao longo do tempo que isso não será tão fácil.

E enquanto o chefão da Evil Corp, Phillip Price (Michael Christopher), adota Angela como seu projeto pessoal, em algum lugar da China uma força espreita, pretendendo usar a oportunidade para crescer em importância no panorama mundial, o misterioso Dark Army liderado pelo mais misterioso ainda Whiterose (interpretado pelo frequentemente travestido B.D. Wong).

Mas e Elliot (Rami Malek)? O idealizador do espetáculo se retira do palco, vivendo uma rotina à parte na qual tenta tirar da cabeça o Mr. Robot (Christian Slater). A revelação, na temporada anterior, de que Mr. Robot não existia e era apenas uma figura da imaginação de Elliot, uma espécie de “Tyler Durden” que era ao mesmo tempo seu velho pai, era algo que espectadores atentos conseguiram antecipar. Esmail, consciente da popularidade de Clube da Luta (1999), não fez questão de esconder com força a reviravolta na história, mas posteriormente a usou para aumentar ainda mais a complexidade da sua narrativa.

Apesar de nesta temporada os personagens principais estarem separados pela maior parte dos episódios, são Angela e Elliot quem vão mergulhar dentro de suas novas realidades. Ela começa a ser hostilizada por ter “se vendido” – e num belo momento durante a tristeza da personagem, Esmail coloca Doubleday para interpretar a canção “Everybody Wants to Rule the World” num karaokê, música que tem tudo a ver com a série. Aliás, a escolha de canções nesta temporada é quase sobrenatural: uma cena de queima de dinheiro ao som de Phil Collins adquire um estranho encantamento, de galhofa e ao mesmo tempo de suspense; e o surrealismo do episódio 11, por exemplo, é amplificado pelo uso de melodias ouvidas na trilha do clássico De Volta para o Futuro (1985).

Mas o mergulho de Angela dentro da Evil Corp a leva por caminhos cada vez mais estranhos, culminando no já mencionado episódio 11 e a sala de interrogatório mais “Lynchiana” já vista na televisão desde que Twin Peaks saiu do ar. É impressionante a condução segura dos episódios, todos dirigidos por Esmail – ele também roteiriza a maioria, Mr. Robot realmente é “televisão de autor”. Se na primeira temporada a frieza “kubrickiana” impressionava e seus enquadramentos acentuavam a estranheza da história, nesta segunda ele homenageia De Palma, Lynch, Um Estranho no Ninho (1975) e faz até referencia ao cinema slasher dos anos 1980, quando descobrimos a origem da máscara da fsociety. Como diretor, Esmail volta a colocar seus atores na parte de baixo do quadro e inclui momentos de quebra de eixo, efeitos visuais e movimentos de câmera significativos e impressionantes. Visualmente, Mr. Robot é tão rico que novos detalhes poderão ser percebidos a cada nova assistida. E numa fantasia de Elliot de uma vida feliz, o diretor e narrador chega até a incluir um lugar para nós na mesa, afinal somos parte do convívio social dele.

E a respeito de Elliot… Tanto o personagem quanto nós, o público, começamos a temporada atormentados por duas perguntas: quem bateu à porta dele no final do ano anterior, e afinal, o que diabos aconteceu com Tyrell Wellick (Martin Wallstrom)? E como Elliot, somos torturados pela demora de Esmail, e do Mr. Robot, em fornecer respostas a essas perguntas. A falta de confiança no narrador é tanta que Elliot, em dado momento da temporada, puxa nosso tapete e admite ter mentido para nós, prometendo não fazer mais isso. Já o Mr. Robot não faz tal promessa. Ainda assim, podemos ter certeza que ele vai proteger o nosso narrador, como nos impagáveis momentos iniciais do episódio 6, onde Elliot e sua família são jogados numa sitcom dos anos 1980, com direito a abertura cafona, trilha de risadas e até uma ponta do Alf, o Eteimoso. Tudo porque a realidade estava dura demais para se encarar.

Percebe-se nesta temporada o desejo de Esmail de levar sua narrativa para o próximo nível, fixando-se na guerra de um homem contra si mesmo e de vários personagens contra as suas realidades. Ao final, o espectador fica com a sensação de que tudo é possível. De alguns momentos dessa audácia narrativa, só poderemos ter certeza absoluta ao final: eventos de alguns episódios deixam no ar uma sensação de desvios, não muito diferente, por exemplo, do que se via nas temporadas iniciais de Lost, quando os roteiristas tiveram de divagar em algumas tramas para não esgotar rapidamente a premissa do programa. O nosso relacionamento com uma série depende da nossa confiança no autor, de que ele está indo a algum lugar e esse destino final, e a jornada, serão boas. Esmail, e Elliot, por assim dizer, quebram a confiança do espectador. Mas, surpreendentemente, quanto mais eles mexem com a nossa cabeça, mais aumenta a vontade de ver o que vai acontecer. Por isso, não há nada na TV do momento igual a Mr. Robot. Nesta realidade, pelo menos.