No começo de Mulher Maravilha, há um momento no qual vemos uma menininha com cara de sapeca imitando o exercício físico das guerreiras amazonas na Ilha Paraíso. Como obra cinematográfica, Mulher Maravilha tem a sua parcela de clichês e situações dramáticas duvidosas, e não foge realmente do padrão de “filme de origem de super-herói” ao qual já estamos acostumados. Mas naquela cena o filme já é capaz de conquistar. Ali, o filme já assume a sua responsabilidade e consolida seu encanto. Escolheram a garotinha certa.

Porque Mulher Maravilha é um bom filme. E encantador. Enfim, a maior heroína das histórias em quadrinhos ganha a sua primeira versão para o cinema num momento importante, no qual tantos grupos sociais – as mulheres, incluídas – lutam por respeito e mais representatividade na mídia. Consciente da sua responsabilidade, a diretora Patty Jenkins tomou a decisão de fazer um filme de super-herói à moda antiga, no qual o heroísmo é heroísmo mesmo, o bem serve como modelo ético e moral, e o mal… Ora, é malvado. E a Warner Bros. também escolheu a mulher certa: Gal Gadot já havia sido a melhor coisa de Batman vs. Superman: A Origem da Justiça (2016), e aqui tem um filme inteiro para si. Um projeto de super-herói à moda antiga precisa, sobretudo, de uma presença forte em frente às câmeras para funcionar – que o digam Christopher Reeve e Chris Evans – e Gadot cumpre a tarefa com facilidade, charme e carisma.

Gadot vive Diana, a princesa de Temiscira, a Ilha das Amazonas. O roteiro bebe bastante da fonte da mitologia grega, que também serviu de base para a reinvenção da heroína nas HQs dos anos 1980: Zeus criou as Amazonas, e um dia uma delas estaria destinada a enfrentar o deus da guerra Ares. Enquanto se prepara para este objetivo, Diana encontra o espião e soldado americano Steve Trevor (Chris Pine, ótimo), que literalmente cai do céu no seu avião, trazendo à ilha a ameaça da Primeira Guerra Mundial. Diana e Trevor então viajam para o nosso mundo para deter a guerra, e no caminho ela aprende sobre a humanidade.

Ancorado pelo desempenho de Gadot, Jenkins explora visualmente as possibilidades da Primeira Guerra, menos retratada no cinema quanto a Segunda. Há uma sequência nas trincheiras, um flashback retratado num tom sépia bastante apropriado, e muitas oportunidades para abordar a condição feminina da época. A forte e decidida Diana parece ainda mais um peixe fora-d’água devido à forma como as mulheres eram tratadas, e o roteiro do filme faz uso cômico dessas situações. Há bastante humor em Mulher Maravilha, criado especialmente pela química entre Gadot e Pine – o ator é meio objetificado ao aparecer quase nu numa cena, como tantas mulheres já o foram em grandes produções fantasiosas de Hollywood, mas claramente se diverte como a “Lois Lane” da história.

Às vezes o humor sai um pouco de controle – uma cena de vilania exagerada com os personagens dos atores Danny Huston e Elena Anaya desperta lembranças do “estilo Joel Schumacher” de filmes baseados em personagens da DC Comics. E a partir de certa altura no seu terceiro ato, Mulher Maravilha se torna meio apressado e substitui um conflito dramático com potencial pelo velho quebra-quebra cheio de efeitos visuais entre a heroína e seu antagonista – aliás, um antagonista que não convence inteiramente. Não chega a ficar ruim, mas é algo que já vimos inúmeras vezes nesse tipo de produção. Patty Jenkins também demonstra não ter controle total sobre as cenas de ação, com momentos de montagem picotada atrapalhando a compreensão espacial e uma empolgação excessiva com planos em câmera lenta, o que às vezes lembra a estética de 300 (2006), o filme do patrão, o cineasta Zack Snyder, aqui atuando como produtor.

No entanto, esses problemas não chegam a prejudicar seriamente a experiência porque Mulher Maravilha tem um centro forte: quando as coisas ameaçam sair dos trilhos, a heroína e a sua intérprete nos puxam de volta com seu laço mágico. A atuação de Gal Gadot aqui é comparável às dos já mencionados Reeve e Evans, no sentido de que todos pegam personagens conhecidos pela bondade e retidão – “chatos”, segundo o chavão atual de que herói tem que ser sombrio – e os tornam figuras interessantes e carismáticas. A atriz transmite a nobreza, a força e a aura de “alienígena” de Diana, tornando-a uma figura com a qual nos importamos, mesmo quando o filme ao seu redor ameaça desabar, e se não desaba realmente, é por conta dela.

Este é também outro grande mérito de Mulher Maravilha: o fato de transpor para a tela as melhores qualidades da heroína título, sem invencionices questionáveis como as da ultima extravagância de Snyder. O grande problema de Batman Vs. Superman – o maior entre vários – era a caracterização questionável dos dois heróis do título: “Super Emo Hamlet” e “Bat de Extrema Direita” não representam de jeito nenhum o melhor retrato dessas figuras mitológicas. Mulher Maravilha de Patty Jenkins e Gal Gadot vai pelo caminho contrário, rejeitando a escuridão e o cinismo da visão de Snyder, e abraça mais o espírito do clássico Superman: O Filme (1978) de Richard Donner, trazendo de volta a dimensão heroica e mitológica para o universo DC do cinema. Lemos e revisitamos essas histórias porque reconhecemos o herói dentro de nós e a nossa capacidade para, talvez, um dia, seguirmos os seus exemplos. Precisamos desses exemplos, especialmente quando somos crianças. E quantas meninas, moças, mulheres, não curtem esse universo nerd de super-heróis e nunca tiveram um filme, ou uma protagonista, para chamar de sua? Um bom, pelo menos? Agora, muitas menininhas por aí vão imitá-la também.