O que é o mito? Em linhas gerais, ele narra uma história, um acontecimento, nos envolve em suas questões que podem ser sociais e de fundamentos do comportamento humano. Neste sentido, o mito rege esse fenômeno sociocultural que chamamos de sociedade; a mitologia também nos auxilia na manutenção das tradições e na prática moralmente pré-estabelecida.

A Bíblia, por exemplo pode ser considerada um mito.

O mito prospera onde quer que enfrentemos o fenômeno geral da “indiferença do mundo”. Na angústia diante da morte, na inevitável frustação de toda posse, nos limites da união erótica, na revolta final do suicídio. Sonho de domesticação intelectual do ser, o mito penetra cada um de nossos caminhos existenciais, colorindo cada gesto humano da sua aguda paixão semântica – da sua sede de dar sentido às coisas

Leszek Kolakowski

Filósofo e Historiador, Citação do livro: A presença do mito. Editora Universidade de Brasília, 1981.

O mito, portanto, seria onipresente as ações humanas, uma conexão entre ser e estar.

Eis aí a condição de Tammy Faye (Jessica Chastain) e sua relação com o mito. Tanto o mito na questão da religiosidade e fundamentos bíblicos que comandam as ações daqueles que seguem a sua palavra à risca (ou não) ou pela pessoa Tammy Faye, ela mesma, um mito do sentido vulgar da palavra por sua popularidade e influência.

Ela, junto ao seu marido, Jim Bakker (Andrew Garfield), foram duas potências na televisão dos EUA com o televangelismo, através da emissora que eles criaram – a PTL. Assim, eles não somente ajudaram a criar uma rede poderosa evangélica na TV – aqui no Brasil tem muita força – mas também para disseminar a palavra da Bíblia, do comportamento bem-aventurado e de família.

Ou não tão bem-aventurado assim, uma vez que Jim Bakker pregava a riqueza. A riqueza como recompensa da fé e de uma vida em favor de Cristo. A riqueza enquanto posse. Nesse interim, o casal construiu um patrimônio milionário somente com doações dos fieis. E eles esbanjavam! Tammy era uma mulher extravagante e ostentava joias, acessórios caros e maquiagens que não eram bem vistos pela sociedade. Jim era mais discreto, todavia, foi o personagem principal nas páginas policiais no fim dos anos de 1980 quando viu seu império ruir com denuncias de corrupção, desvio de dinheiro, traição e escândalos sexuais.

CAMINHOS FÁCEIS E PREVISÍVEIS

Ainda segundo Kolakowski, “os valores humanos são pessoais desde o instante em que a evolução da natureza alcançou o modo de ser pessoal. Quando o desaparecimento da personalidade é total, os valores forjados no ser pessoal estão limitados estritamente à sua duração”.

Mas que valores são estes onde as práticas não condizem com a teoria? Onde “a palavra de Deus” não é usada de uma forma estabelecida? O poder e a ambição em nome do Dele desencadeia uma série de questões morais que o diretor, Michael Showalter, baseado no roteiro de Abe Sylvia, não se aprofunda, para aqueles que desconhecem a história, se não fosse o famigeradíssimo “baseado em fatos reais”, poderiam pensar ser uma obra ficcional, já que ele abusa da caricatura para mascarar uma direção e roteiro básico e medíocre.

É sabido que em filmes biográficos haja muita neutralidade, quase que uma imaculação do personagem central e contraditório. Showalter envereda por este caminho. Pois a protagonista é Tammy, sabemos tudo por seu olhar, sua perspectiva.

De sua infância pobre e difícil ao comando de uma mãe dura e severa (Cherry Jones, ótima!) e do estrelato à queda – ela ainda teve uma carreira muito frutífera como cantora cristã. Ainda assim, peca por uma linguagem muito fácil desse tipo de filme, ainda que o melodrama tenha alívios cômicos que soam artificiais.

JESSICA CHASTAIN ESPETACULAR

O diferencial aqui é que os problemas do roteiro e direção são disfarçados pelo figurino e direção de arte exageradamente over e bregas e reconstituindo com precisão a época, especialmente os anos de 1970-1980. É tudo muito colorido, é tudo muito gritante e estridente, como Tammy Faye.

Apesar da postura extravagante e pomposa, seus defeitos ficam explícitos em momentos que o filme mais parecia esquetes saídas diretamente do SNL (Saturday Night Live, longevo programa de humor de muito sucesso em terras estadunidenses). E, não isso não é um elogio, por mais que o tradicional programa de humor seja muito bom. Andrew Garfield até tenta tornar tudo engraçado, porém, nota-se que ele não está à vontade no papel.

E chegamos ao ponto principal: Jessica Chastain. A atriz está em seu melhor momento desde muito tempo. Chastain é uma atriz perspicaz e carismática e sabe o que tem em mãos. Por isso, não tem medo do ridículo e embarcou na vida e obra de Tammy Faye. Auxiliada por uma maquiagem pesada que impressiona e incomoda na mesma proporção, a atriz exala carisma. É uma espécie de caricatura que funciona, a própria Tammy Faye já era uma caricatura. Sem ela, o filme seria uma catástrofe.

Chastain humaniza essa mulher que realmente crê na palavra, uma mulher tradicional, mas que não se fecha no seu mundo. Poderia ser considerada uma mulher progressista? Não. Mas ela tinha ideias fortes sobre a sua própria presença no show que comandava, na presença/importância da mulher enquanto companheira/parceira do marido e na luta conta o anti-AIDS, ela foi uma importante porta-voz na luta na causa, causando rebuliço no meio evangélico totalmente conversador.

Nota do Autor: Uma passagem muito importante e um dos melhores momentos do filme é quando o império cai, Jim é preso, mas o que se passa na TV são apenas programas zombando da aparência física da mulher. Pode não ter sido intencional, mas é fundamental uma reflexão acerca disso. O homem é preso por crimes, mas o que reverbera na TV é a aparência física de Tammy!

 A SUSTENTAÇÃO DO MITO E A BRECHA PARA A QUEDA

Tammy Faye tinha seus defeitos, mas era uma mulher de fé. Fé na vida, nas pessoas, no que deveria ser certo, pela justiça. Ainda assim, uma pessoa imperfeita, como todos. Diferente de Jim Bakker e outros tantos religiosos como Jerry Falwell (Vincent D´Onofrio) e Pat Robertson (Gabriel Olds), homens, brancos, ricos e com o poder da massa em mãos sob uma ótica religiosa e em um pedestal acima do bem e do mal, parece familiar, certo? Pois bem, a religião pode ser lucrativa para alguns que tem esse “dom” do discurso.

E aí, mais uma vez, nos encontramos com Kolakowski, quando ele diz:

A fé no mito não pode ser obtida por convencimento racional; a atividade de convencer pertence a outro âmbito de comunicação interpessoal: aquele em que regem os critérios da solidez tecnológica dos julgamentos.

Leszek Kolakowski

Filósofo e historiador, Citação do livro: A presença do mito. Editora Universidade de Brasília, 1981.

Por mais que “Os Olhos de Tammy Faye” apresente problemas, penso que nas entrelinhas, Showalter quis falar exatamente disso: a questão do mito, da solidez e como se constrói um mito e do poder do seu discurso estruturado e convincente, comandando assim uma nação. Eis como os mitos se constroem, através da palavra. Se sustenta através da vulnerabilidade. Mas há sempre uma brecha, sempre há um passo em falso para que todo castelo de areia dissolva.

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