A despeito de qualquer religião, há algo de bonito na ideia do poder da fé das pessoas: quando a crença em algo invisível ou intocável, seja lá o que for, trabalha a favor de uma transformação positiva, pessoal e coletiva, e de uma mensagem de força e de esperança, a ideia da fé revela sua face mais bonita. Quando essa fé é institucionalizada em prol de outros interesses, toda a ideia de um sentimento puro e espiritual perde imediatamente sua beleza. Dito isso, se não funciona como filme, “Nada a Perder – Contra Tudo. Por Todos” funciona ao menos como um dos melhores exemplos de uma propaganda a serviço não da fé, mas de uma instituição se aproveitando desse sentimento – e, mais especificamente, do homem por trás dela.

Alardeada como um dos blockbusters mais esperados dos últimos anos, a cinebiografia de Edir Macedo, o líder espiritual da Igreja Universal do Reino de Deus, conta a história do bispo desde sua infância até a criação e expansão da igreja, hoje uma das maiores organizações religiosas do mundo, presente em quase 200 países, segundo a própria Igreja. O ponto de partida é a controversa prisão do bispo em 1992, quando passou 11 dias detido sob acusações de charlatanismo, curandeirismo e estelionato – daí, em uma estrutura de flashback, acompanhamos sua história desde a infância em Rio das Flores, no interior do Rio de Janeiro, até esse momento.

Nas mãos de um cineasta experiente ou mais ousado, essa história de vida e suas polêmicas renderiam, no mínimo, um estudo de personagem complexo – e, se a pretensão era mesmo fazer algo numa escala épica, emular Cidadão Kane ou O Poderoso Chefão até que não seria má ideia. Há até base para isso, uma vez que o próprio filme reconhece a inteligência de seu protagonista em expandir sua igreja e angariar fiéis se utilizando dos meios de comunicação, por exemplo, passando de programas de rádio e TV a discos de vinil e culminando na compra da Record, hoje um conglomerado midiático.

No entanto, produzido e encomendado pelo próprio biografado, Nada a Perder não tem outro objetivo a não ser exaltar seu protagonista, se assumindo sem nenhuma reserva como uma cinebiografia chapa-branca. Para isso, a direção fica a cargo de Alexandre Avancini, mais conhecido por seu trabalho em novelas (Por Amor, Quatro por Quatro, Os Mutantes) e por comandar o fenômeno gospel anterior, Os Dez Mandamentos, e o roteiro nas mãos de Emílio Boechat (também de novelas como Bela, a Feia) e Stephen P. Lindsey (alardeado pela Record como um “roteirista de Hollywood”, mas cujo maior crédito é o drama Sempre ao Seu Lado, com Richard Gere).

Do ponto de vista técnico, contudo, Nada a Perder não chega a ser um desastre: apesar de uma dose de vícios diretamente saída da escola estética das novelas da Record, como uma câmera lenta incômoda aqui e ali, closes televisivos e uma trilha sonora altamente didática e intrusiva, o trabalho de Avancini, se não inova, ao menos dá conta de fazer um “feijão com arroz” satisfatório na maior parte do tempo. Essas escolhas nem sempre funcionam, é verdade: o filme subestima seu próprio público, por exemplo, prendendo-o a uma estrutura cíclica, como ao insistir numa montagem que concatena certo momento no presente com o passado, já que, aparentemente, a referência a uma frase de efeito dita antes não ficaria tão clara assim se não fosse desenhada.

Aplausos mesmo vão para o trabalho de reconstituição de época feito pelo design de produção do longa: a direção de arte recria cenários dos anos 80 e 90 com fidelidade, bem como os figurinos e cabelos dos personagens remetem diretamente às décadas pelas quais vão passando. A exceção fica por conta de Ester (Day Mesquita), esposa do protagonista, presa a uma caracterização na qual nunca envelhece, e sempre parece assustadoramente muito mais jovem do que o marido mesmo em longas passagens de tempo.


Como fabricar um santo…

Se tecnicamente Nada a Perder não chega a ofender, o mesmo não se pode dizer quanto a suas escolhas narrativas. Desde o momento em que Edir Macedo surge sendo preso até o final do filme, fica cada vez mais clara a única intenção da obra: transformar a figura do pastor em uma espécie de mártir para seus seguidores. Não à toa o pôster e o próprio longa vendem a todo momento a icônica imagem de Edir lendo uma Bíblia atrás das grades, como um homem santo injustiçado.

Mais do que “contra tudo e por todos”, porém, como o subtítulo anuncia, Edir parece muito mais ser “contra tudo e contra todos”. A todo momento, o filme parece criar um novo empecilho dramático para sua jornada de concretizar seu grande sonho de “ganhar almas”, como ele mesmo diz, para Deus. Não que esses empecilhos não tenham mesmo existido, mas o filme faz questão de pintar todos os personagens ao redor de Edir como inimigos e homens que não chegam perto de sua santidade: o cunhado RR Soares (vivido por André Gonçalves), por exemplo, com quem Edir começou a trabalhar lado a lado até ambos seguirem por igrejas diferentes, é visto como um homem vaidoso, que não prega para plateias pequenas e ouve conversas atrás da porta.

Enquanto isso, os pastores das igrejas pelas quais Edir passa em sua vida são homens maculados por defeitos graves, como impedir que um mendigo se misture aos fiéis, ou como a cena surreal em que, durante um almoço, o protagonista é vítima da humilhação de outros pastores que não o julgam pronto para o trabalho – e que culmina em uma epifania divina para Edir. A própria prisão do bispo, embora, de fato, segundo os relatos da época, não tenha tido base legal satisfatória, ganha aqui ares maiores de teoria da conspiração, sendo orquestrada por um juiz, um ministro e um bispo católico sem nome que surgem em ângulos inclinados e envoltos numa fotografia escura contrastante com os planos abertos da igreja de Edir.

A mensagem, a todo momento, é a de que num mundo dominado por muitos egos e instituições ultrapassadas, é Edir Macedo o único a ouvir o verdadeiro chamado de Deus, o único a fazer o trabalho que deve ser feito. Predestinado a isso, como a própria mãe (papel de Beth Goulart) diz a ele, ainda criança, ao afirmar que ele não subirá árvores, mas sim montanhas. Assim, não há espaço para defeitos e falhas de caráter no personagem, tornando-o uma figura puramente unidimensional. Pelo menos essa faceta é bem defendida pelo intérprete do personagem, Petrônio Gontijo, que faz um trabalho em que o personagem está sempre sério e determinado, e assumindo trejeitos conhecidos das pregações do próprio Edir.

Curiosamente, Nada a Perder leva cerca de uma hora de duração tecendo essa narrativa de injustiça e percalços na vida de Edir até a fundação do que seria a base da Igreja Universal do Reino de Deus, mas passa por alto e apressadamente por toda a ascensão meteórica do bispo e da Igreja até o momento de sua prisão. Nada no filme se propõe a explicar como, de uma cena para outra, Edir passa de um apartamento humilde com baratas para uma mansão com direito a largos cômodos, motorista próprio e filhos morando no exterior.

Nesse ponto, ficamos tão perdidos quanto o juiz inquisidor maligno vivido por Dalton Vigh, e a resposta de Edir é pura e simplesmente que as contas batem e os fieis dão tudo de bom grado. Como um dízimo dado a uma instituição se transforma no patrimônio pessoal estimado em mais de um bilhão de dólares de um dos homens mais ricos do Brasil, de acordo com a Forbes, já é um mistério que fica de lado. Na narrativa pessoal construída pelo próprio bispo, não há mancha capaz de macular sua reputação – enquanto, na vida real, a história pode ser bem diferente. Nem mesmo Deus Não Está Morto foi tão longe nas inverossimilhanças de uma ficção.


… e como fabricar um fenômeno de bilheteria

Para fabricar a imagem de santo, é necessário fabricar também o fenômeno: mesmo antes da estreia, Nada a Perder já era a maior bilheteria nacional de 2018. É o mesmo caso de Os Dez Mandamentos em 2016, campeão de venda de ingressos daquele ano. A questão é: até que ponto essa bilheteria realmente se converte em espectadores e até que ponto esse fenômeno é orgânico e não fabricado?

A estratégia para inflacionar a bilheteria de Nada a Perder parece ser a mesma adotada já em Os Dez Mandamentos: os ingressos são comprados, esgotados e depois distribuídos aos fiéis gratuitamente. É um fenômeno cíclico, alimentado retroativamente: Edir Macedo banca o filme, coloca em cartaz e depois banca também os ingressos para ver e pagar o próprio filme. Não tem muito como dar errado, mesmo que haja lugares vazios com ingressos comprados.

Assisti ao longa numa sessão no Cinemark do Studio 5, em Manaus, lotada. A experiência foi quase surreal: ingressos devidamente distribuídos até mesmo pouco antes de entrar na sala; fotos e vídeos do público antes e depois do filme, com cobertura completa; ônibus para ir deixar e levar as pessoas de volta para casa; distribuição de lencinhos que seriam abençoados pelo próprio bispo em uma aparição durante os créditos finais do filme – quase o Nick Fury do seu próprio universo expandido, mas com o superpoder da oração.

Ver a fé que move as pessoas é, como disse no começo do texto, uma experiência bonita em geral; ver essa fé convertida em instrumento quase próximo da alienação, porém, é preocupante e perigoso. Em tempos de política conturbada e polarizada, e especialmente em um ano de eleições, Edir Macedo leva a mesma estratégia de dominar meios de comunicação que usou com a TV e o rádio ao cinema – e, por isso, Nada a Perder, mais do que um filme, é um panfleto para Macedo e a Universal, com direito já a uma segunda parte anunciada nos próprios créditos e uma aparição do bispo rezando para seu público fiel. Quantas vezes você viu isso no cinema? Edir Macedo se consolida, antes de tudo, como seu próprio santo.

De fato, numa coisa a mãe do personagem estava certa: ele subiu montanhas. Os subterfúgios para essa subida, no entanto, já são outra história – e não foi dessa vez que ela foi contada.