Para onde estamos indo? Qual o caminho que a humanidade está tomando nesta desventura social? Para muitos, os valores estão distorcidos e é preciso cortar o mal pela raiz para que voltemos ao plano moral. Mas que moral e valores são estes que nunca sentimos? Há muita subjetividade neste tema. Os valores morais e éticos para uns não podem ser para o outro. Portanto, há um cabo de guerra e quem vence é sempre aquele que está no topo do poder hierárquico social – aqui, nem preciso falar quem, não é mesmo?

Hoje em dia, vale tudo para manter estes valores e a justiça limitada. Nem que para isso haja justiça com as próprias mãos, genocídio e um extremismo em massa, deixando a sociedade em geral mais violenta, doente e em completo estado de abandono psíquico. Com as redes sociais, a bola de neve da distorção dos valores e justiça se engrandece de uma forma astronômica e desastrosa. Reside aí os linchamentos virtuais e presenciais que tomam conta de uma sociedade cada vez mais ensandecida e com sede de sangue do outro para, de alguma forma, se sentir vingada e estar protegida, mas protegida por quem? É nesse contexto que o thriller dramático “O Homem Cordial” se embasa.

Aurélio (Paulo Miklos) é um roqueiro decadente que, depois de anos, juntamente com a sua banda, fazem um grande show. Esta é a cena de abertura, entre os riffs pesados de guitarra, uma bateria frenética e um vocalista com sangue nos olhos cantando uma música de protesto. De repente, começam a jogar latinhas e garrafas neles. Pronto. O show acaba ali. Depois descobrimos o motivo da ofensiva: Aurélio ajudou um menino negro a ser linchado por brancos raivosos em um bairro nobre por supostamente ter roubado um celular. Na confusão, morreu um policial militar.

QUEM É VILÃO E MOCINHO?

Se você viveu no Brasil nos últimos anos sabe que, com a ascensão da extrema-direita e do neoliberalismo evocadas por “políticos” a exemplo do ex-presidente inominável, sabe que o país está sofrendo desse mal doentio de violências que não são mais simbólicas, mas muito vívidas e cada vez mais impregnadas. Seja por violência policial ou de civis, os grupos minoritários como negros, pobres, moradores de comunidades, indígenas, mulheres e pessoas LGBTQPAI+ são o alvo. E isso, não sou eu quem fala, há dados e são alarmantes: segundo o Instituto Cem Flores, entre 2013 e 2020, foram quase 40 mil vidas negras exterminadas pela Polícia Militar, desconsiderando os últimos três anos e os civis que têm a total liberdade para matar, por conta desse discurso de ódio. Outro exemplo: o Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo há 14 anos!

Em certo momento de “O Homem Cordial”, há um diálogo entre Aurélio e Bestia (Thaíde). O primeiro, por mais que seja cercado de boas intenções, tenta apaziguar os domínios da PM na cidade. O segundo diz: “esse mundo visto pelo olhar do branco deve ser lindo, maravilhoso”.

E é justamente isso. Iberê Carvalho (“O Último Cine Drive-In”) monta esse thriller noite afora de uma São Paulo gélida, cinza e que as oportunidades não chegam a todos. O negro é visto como marginal, atira-se primeiro para depois perguntar. E não é uma questão de polarização, são os fatos. Brancos não irão entender ser perseguido de forma gratuita ao acordar, sair de casa e ser alvo de violência unicamente por sua existência. Valores, quais valores?

E a internet (percebam que não há ninguém além de Aurélio ajudando um menino de 11 anos de ser linchado por pessoas brancas adultas) se cria nessas lacunas sociais. A crítica de Carvalho têm muitas camadas: a internet atuando neste modus operandi nefasto se fazendo presente por influencers caçadores de likes e que reafirmam este discurso de ódio (a exemplo do “chupetinha”, um jovem que atrai outros jovens), cidadãos de bem que fazem questão de gravar um crime para justificar outro, o linchamento em todas as instâncias, o papel do artista (e esse é um ponto fundamental na construção do filme) e o uso de sua voz e, principalmente, a truculência policial: quem é o vilão e quem é o mocinho nessa história?

UM PAÍS QUE SÓ PIORA

Uma das cenas emblemáticas é quando Aurélio e seu grupo estão na presença de policiais: há muita violência nas falas (e, como uma pessoa que já passou por isso, afirmo que é daí para pior), mas, olha lá, o celular e a internet também salvam. Duas medidas na balança de uma sociedade desmedida.

E quem são esses meninos como Matheus de apenas 11 anos acusados e linchados pelos justiceiros brancos que atuam pela moral e ética em prol deles mesmos? Não interessa saber para o restante, são apenas números e números cada vez mais crescentes. Para a família, resta o lamento.

“O Homem Cordial” é um retrato brutal de como a nossa sociedade está no mais profundo buraco. Interessante pensar que o longa foi gravado em 2018 e, de lá para cá, muita coisa piorou, entre bandeiras do Brasil para forjar um patriotismo fascista e brutalidades liberadas e aplaudidas, a ficção imita a realidade. E sabe o que é o pior? A realidade é muito mais brutal. Alguém deve estar morrendo agora injustamente. Ouça…