Para uma seleta parcela de cinéfilos ao redor do mundo, 2004 foi um acontecimento.

É o ano, claro, de Antes do Pôr-do-Sol, a aguardada continuação de Antes do Amanhecer, uma pequena pérola romântica lançada pela ostra Richard Linklater em 1995. Naquele filme, descobrimos o casal Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy), jovens viajantes que se conheciam num trem a caminho de Viena, Áustria, e viviam um dia inesquecível na companhia um do outro – numa maravilhosa evocação cinematográfica da sensação que experimentamos ao conhecer uma pessoa especial.

Não é pouca coisa: com o tempo, Antes do Amanhecer se converteu num clássico dos filmes sobre relacionamentos, uma obra ao mesmo tempo leve e profunda, urgente e reflexiva, efêmera e inesquecível como o encontro de Jesse e Celine. O texto de Linklater e Kim Krizan ajudava, mas Ethan Hawke e Julie Delpy eram J e C – poucos casais, desde então, ficaram tão imantados na memória dos cinéfilos, e poucos atores seriam tão associados a um mesmo trabalho.

Mas é fácil falar disso hoje, quando a dupla é patrimônio comum dos apaixonados por cinema e Linklater finalmente adentrou (modestamente) o mainstream, concorrendo ao Oscar em 2015 por Boyhood: Da Infância à Juventude (2014). Em 2004, o primeiro filme de J e C já havia sido lançado há nove anos, e apenas um pequeno séquito, pré-redes sociais, conhecia e admirava incondicionalmente a obra. Para muita gente, portanto, Antes do Pôr-do-Sol foi a primeira apresentação à história de Jesse e Celine – e a descoberta do encanto único engendrado pela química entre Linklater, Hawke e Delpy.

Nem todo mundo é capaz de enxergar, à primeira vista, a grandeza desses filmes. Não há ação, para além dos passeios aparentemente intermináveis do casal – toda a progressão dramática é baseada em diálogos, em afirmações e reações, nas tentativas de Jesse e Celine de se aproximar, de transpor as barreiras impostas por hábitos, por visões de mundo, pela intimidade. Fala-se em ecologia, crise humanitária, celebridades, miudezas mil. Parado, chato? Talvez, se tudo o que você espera de um filme for uma orgia de pancadaria e explosões à Michael Bay (Transformers), ou as tramas mecânicas e inócuas de tantas comédias românticas banais, que abarrotam os cinemas. Em vez disso, Antes do Pôr-do-Sol oferece delicadeza, uma inteligência que não subestima a do espectador e um ritmo tranquilo, sem pressa, como o de uma boa refeição ou de uma conversa prazerosa – e uma pulsão de romance e encantamento reais, sem artifícios ou enfeites, belos e complicados, como estes soem ser na vida. Ainda mais do que Amanhecer, talvez, Antes do Pôr-do-Sol pode ser considerado o ideal platônico dos filmes sobre relacionamentos – é denso, lírico, cortante, intenso, doce-e-amargo, dividido entre hesitações e impulsos, avanços e retrocessos, mais parecido do que qualquer outro com a própria vida. Um homem e uma mulher, as ruas de uma bela cidade (Paris) à frente, e os anseios, dúvidas e transformações de dois antigos cúmplices após um longo intervalo.

Como em Amanhecer, o mote da trama é um encontro fortuito: Jesse está em Paris, cidade de Celine, para lançar seu novo livro – o qual vem a ser uma recriação romanceada do dia em Viena. A moça hesita, mas vai – e o resto do que se seguirá é a longa tentativa de Jesse e Celine de recompor o que não foi, de imaginar o que poderia ter sido, de entender o que é agora e o que poderá ser. Essa descrição pretensiosa não dá ideia da beleza despojada, direta, do filme: poucas coisas são tão prazerosas quanto acompanhar as conversas, os pequenos gestos, os olhares, as dolorosas confissões de Jesse e Celine. Trata-se de uma simbiose, uma sintonia raríssima de atuações, roteiro e direção. Mais ainda do que em Amanhecer, Hawke e Delpy vivem, respiram seus personagens: as falas não são recitadas, não no sentido em que estamos acostumados a ver num filme – elas parecem brotar espontaneamente da cabeça dos atores, com todas as hesitações, as frases deixadas no ar, as interrupções que marcam nossas conversas cotidianas. Diferente de Antes do Amanhecer, que foi inteiramente concebido por Linkater e Krizan, aqui Hawke e Delpy também assinam o roteiro. Cada frase, cada gesto e inflexão dos personagens foi intensamente discutido e preparado ao longo de um ano, a tal ponto que o que se vê na tela acontece em tempo real: a câmera apenas pontua as situações e acompanha os atores.

Foi o que viabilizou, também, a realização da obra – Linklater e a equipe trabalharam com menos dinheiro e um prazo ainda mais apertado que o do primeiro filme, mas a preparação meticulosa dos atores levou Antes do Pôr-do-Sol a ser filmado inteiramente em apenas quinze dias. Um dado ainda mais impressionante diante dos resultados fabulosos conseguidos por Hawke, e, principalmente, Delpy: o filme é dela, desde o sorriso sufocantemente delicado para Jesse na livraria, no início do filme, até o diálogo sobre Nina Simone, no final arrebatador. E o que dizer de momentos como a conversa melancólica sobre o barco no Sena, tendo ao fundo a catedral de Notre Dame, ou o diálogo assustador, pela intensidade, no carro? Em todos, a expressividade da francesa brilha, mas Hawke também entrega um trabalho não menos do que inspirador.

Mas, afinal, o que marca a maior diferença – e, possivelmente, a superioridade – de Pôr-do-Sol sobre Amanhecer é a sua pungência: se o primeiro filme é colorido pela descoberta, pelo entusiasmo, pela entrega juvenil dos protagonistas, que andam sem rumo por Viena como se a noite não fosse ter fim, em Antes do Pôr-do-Sol os personagens carregam o peso das desilusões, dos arrependimentos, das inseguranças: esta pode ser a última chance de viver algo especial na vida, de redescobrir a fagulha daquele amanhecer antes que escureça de vez. O tempo, agora, se tornou curto demais. Que outro filme romântico que você conhece soa tão dilaceradoramente verdadeiro?