E eis que, do nada, a minissérie britânica Bebê Rena se tornou um daqueles fenômenos instantâneos que, de vez em quando, surgem na Netflix: no momento em que esta crítica é publicada, ela é a série mais assistida do serviço de streaming no Brasil e em diversos países, e está sendo amplamente discutida por espectadores, críticos e até psicólogos. Esta produção pequena acabou por ofuscar outras cheias de efeitos visuais ou com orçamentos bem maiores. Tudo isso de uma forma orgânica.

Nada mal para uma atração que não devia parecer, no papel, destinada a tanto sucesso: a situação bizarra com certeza não interessa a todos e o título esquisito – que só é definitivamente explicado, de forma tocante, na cena final do último episódio – com certeza não ajuda. Mesmo assim, assistir a Bebê Rena é uma experiência alternadamente engraçada, desconcertante e perturbadora e o fato é que é difícil largar depois que se começa o primeiro episódio – são sete ao todo.

Bebê Rena conta a história de Donny, um rapaz escocês que sonha em se tornar um grande comediante e, enquanto a chance não chega, trabalha como bartender num pub londrino. Um dia, entra pela porta do bar uma mulher chamada Martha. Donny mostra gentileza para com ela e isso sela o seu destino: logo, Martha vai começar a persegui-lo, tanto no mundo virtual quanto no real e transformar sua vida num inferno.

INSEGURANÇA MASCULINA E AUTODESCOBERTA: MOTES DA SÉRIE

Contar mais do que isso sobre a trama significaria privar o espectador de descobrir uma história realmente arrepiante, que começa conduzida por um humor sombrio tipicamente britânico e, lá pelo meio, começa a adquirir características de fato perturbadoras. E o mais impressionante é que ela de fato aconteceu – a minissérie é baseada em fatos reais da vida do ator principal da atração, Richard Gadd, que é também roteirista de todos os episódios.

Em entrevistas, ele disse que algumas coisas foram condensadas, mas no geral o básico da trama de Bebê Rena veio das experiências dele. Como hoje vivemos na era dos detetives amadores e produções true crime, muita gente está investigando a história, algo sobre o qual o próprio Gadd reclamou recentemente. Se você quiser saber o que é real, pode clicar aqui, depois de assistir aos episódios, claro, e quem quiser ler uma entrevista do próprio Gadd (em inglês) pelo site The Guardian, pode clicar aqui.

Uma história desse tipo poderia facilmente cair na caricatura, mas Gadd habilmente evita isso, e torna Bebê Rena uma poderosa narrativa sobre insegurança masculina e autodescoberta. O clima de desconforto é frequente – até com alguns momentos de verdadeiro terror – mas o roteiro evita fazer de Martha uma vilã ou uma aberração. Pelo contrário, na maior parte do tempo o que o espectador sente em relação à personagem é pena mesmo, por causa dos seus óbvios problemas emocionais e psicológicos. Contribui para isso a atuação sensacional da desconhecida Jessica Gunning, que a retrata como uma figura tridimensional, ora assustadora, ora patética.

Além disso, Gadd volta as lentes para si mesmo: ao longo dos episódios, Bebê Rena explora o seu protagonista de formas inesperadas, buscando responder à pergunta “por que, afinal, ele demorou tanto para denunciar Martha à polícia?”. Essa resposta é mais complexa do que parece à princípio, e faz com que a série se torne pesada e mais terrível, sem contudo alienar o espectador. É um trabalho bem difícil que ele realiza aqui, tanto na função de roteirista quanto na de ator, e só pela disposição de exibir uma parte bem sombria de si mesmo diante do mundo, Gadd já merece elogios. Porém, ele vai além, explorando a noção de que no ciclo do assédio e do abuso, geralmente duas pessoas têm participação. Alguns momentos dele são impressionantes, ainda mais considerando que certas cenas podem praticamente ter servido de gatilho para ele.

fenômeno merecido

Esse poder das atuações e do roteiro é acentuado pelas escolhas de direção: Bebê Rena emprega ângulos estranhos e oblíquos, e certos closes chegam a ser ora desconfortáveis, ora assustadores. Mesmo assim, um problema ainda se destaca: a narração em off parece excessiva às vezes, principalmente nos primeiros episódios – de vez em quando, Gadd parece sentir a necessidade de explicar para o espectador o que a imagem já está tornando claro.

Ainda assim, reclamar disso parece pequeno perto da realização. Bebê Rena passa a impressão de ter sido criada por alguém que quis transformar em arte fatos muito ruins que aconteceram em sua vida, a fim de extrair sentido deles, entreter e, quem sabe, ajudar a compreender emoções e pensamentos muito pessoais, mas que são compartilhados por muitas outras pessoas. E quem diria, numa era em que tantas produções no streaming e na tela grande buscam fórmulas, repetições e se mostram avessas a riscos, de vez em quando um fenômeno aparece para nos lembrar de que falar de algo muito particular, na maioria das vezes, é a chave para ser universal.

Na era do “conteúdo” e do algoritmo, algo tão pessoal quanto Bebê Rena virar sucesso e tópico de discussão não deixa de ser tão estranho, e interessante, quanto o produto na tela.