Tenho pra mim que uma das principais vinganças é o esquecimento. Pare um pouco e pense no que consiste o esquecimento. Você é capaz de defini-lo e compreender o que ele envolve? O termo “esquecimento” está ligado à memória e o seu cessar, relaciona-se a algumas doenças e peculiaridades humanas. Para os profissionais de educação e saúde, ele é fundamental para o processo de aprendizado. Para os escritores e poetas, a vida é baseada na memória do esquecimento. Segundo os sociólogos, a cultura se dirige contra ele. Independente de toda conotação do esquecimento na nossa sociedade, você deve se lembrar de alguma vez que foi esquecido e o quanto isso foi dolorido na época, ou ainda o é?

Em A Batalha do Apocalipse, o Primeiro General, Ablon, afirma que o seu pior temor é esquecer. Não precisamos nem recorrer a outros casos da literatura fantástica para entender o quanto esse verbo transitivo direto ou indireto é o receio que assombra muitas pessoas reais ou ficcionais. Porque, para muitos, o conceito de esquecer é ser apagado, não existir, ser um não lugar – sem história, referências, relevâncias – e só a ideia de ter todas essas ausências pode criar um pânico em você que está lendo isso, porque geram em mim reflexões existenciais que não cabem no momento e nem nesse texto.

Por que refletir sobre o esquecimento, a sensação de ser esquecido, apagado? Pense bem, o que você faria se a pessoa que ama fosse embora do país sem dar notícias? Ou se de repente, você estivesse andando na rua e encontrasse um de seus melhores amigos e ele simplesmente não se lembrasse do seu rosto ou de quem você é? É interessante, o quanto algumas respostas para essas indagações podem ser encontradas no cinema, levantando reflexões sobre como o esquecimento e todos os conceitos ligados a ele conseguem nos afetar.

Embora pareça dolorido, para algumas pessoas esquecer é a melhor solução. Afastar aquilo que as fere ou que elas poderão vir a machucar. Elas tomam a finitude que o esquecimento carrega como virtude e o tornam algo positivo. Afinal, quem não gostaria de esquecer uma situação constrangedora? Ou alguém que cruzou o seu caminho deixando cacos de vidro por todo lugar? Talvez, tomando esse pressuposto, tenha sido o que incentivou Michel Gondry e Charlie Kaufman a contarem a história de uma mulher que decide esquecer seu amante para sempre, se submetendo a um tratamento experimental que retira de sua memória os momentos vividos com ele. A história rendeu a dupla vários prêmios, entre eles o Oscar e o Bafta de Melhor Roteiro original.

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças narra o relacionamento fracassado do casal Joel (Jim Carey) e Clementine (Kate Winslet). É interessante observar como o filme apresenta duas pessoas completamente diferentes e como o relacionamento entre elas é construído a partir dessas diferenças. Os dois personagens representam dois momentos como um todo: Joel – tímido, retraído, solitário -, que procura preservar o relacionamento, embora saiba que não consegue controlá-lo; e Clementine – extrovertida, impulsiva -, que não quer fazer concessões e não acredita em compromissos a longo prazo. Enquanto Joel procura administrar sua vida de forma racional, Clementine está apenas a procura da paz de espírito e seguir a vida. Essas duas facetas distintas postas no filme dentro de um relacionamento caracterizam um estado de “ambivalência”, que permeiam todos os seres humanos e se tornam mais exacerbados quando postos diante do outro.

Kaufman e Gondry articulam um filme forjado pelas relações e como essas contribuem para que as pessoas queiram manter o que sentem ou esquecer e fazer os outros esquecerem. Essa articulação envolve os personagens centrais, mas também incide sobre aqueles que o contemplam. É difícil contemplar a obra e não refletir sobre seus próprios métodos de esquecimento e seus relacionamentos tanto pelos outros como por si. Clementine demonstra isso pelas tonalidades variantes de seus cabelos, que se adequam a maneira como ela se encaixa na situação em que vive. A própria referência da personagem a si durante a sequencia em que aborda a lembrança que tem de sua infância remete as possibilidades de relacionamentos que podem surgir com o seu reflexo e como isso incide sobre o modo de ver os outros. Clementine esteve em busca de uma transformação e, talvez, por isso recorreu aos métodos de esquecimento do Dr. Howard (Tom Wilkinson).

Howard, por sua vez, oferece a seus pacientes o benefício de um começo completo, sem as recordações de eventos ruins anteriores, além do próprio benefício da felicidade, que se tornou uma exigência do homem contemporâneo, fazendo questão de “apagar” da sua memória toda e qualquer lembrança que não seja positiva, quer guardar apenas as memórias boas que ajudem a melhorar a sua auto-imagem.

As decisões que o médico toma remetem muito a um trecho de Agatha Christie, quando ela afirma que “o passado não pode ser abandonado, não pode ser relegado ao esquecimento, permanece ao nosso lado”. É importante observar o quanto essa frase encaixa-se na vida e nas atitudes dele e do próprio processo de esquecimento abordado por Kaufman e Gondry. Esquecer traz conseqüências e talvez a pior delas seja a negação do que se é e do que se foi. Embora certas coisas não se esqueçam completamente, algo sempre vai estar lá, matutando, incomodando, se fazendo presente. Joel e Clementine sempre teriam Montauk e ela estaria ali para relembrá-los constantemente do que resolveram esquecer.

Há concomitantemente o relacionamento entre o Dr. Howard e sua secretária, Mary, que foi imposta ao tratamento antes mesmo dos outros e não se recorda de ter vivido um relacionamento pessoal com seu patrão, embora nutre sentimentos favoráveis a ele. Tem-se ainda as relações de Sam e Mary, Sam e Patrick e Patrick e Clementine; sendo que nesta última, Patrick está sempre a procura de fazer com que Clementine reviva as lembranças que teve com Joel, mas aplicadas a ele, numa espécie de apropriação das lembranças ocorridas entre o casal principal. Em todas as relações discutidas no filme, também, é notável a ocorrência de princípios de incerteza que acompanham o próprio processo de esquecer: a presença da pureza versus limpeza, ordem, consumo e incerteza.

A fotografia do filme traz o ar gélido de Nova York e nos faz penetrar na sensação de estar na mente de Joel, algo feito por Kaufman em “Quero ser John Malkovich” e ao mesmo tempo esboça as características do próprio Joel, já que o que acompanhamos é o ponto de vista dele. Sob os vários caminhos da sua mente sem lembranças. Por isso, há uma fusão de cenários e o interessante é observar conforme as suas memórias são extraídas, a trilha sonora se altera, as cores e o rosto das pessoas vão perdendo o tracejado. Há uso de efeitos que se realizam em função das necessidades do roteiro, distanciando-se do que comumente vê-se. Soma-se a isso a escolha estética da montagem. A linha temporal do filme é um recurso que também leva a reflexão do espectador, incluindo não apenas o entendimento do filme, mas levantando pensamentos sobre o modo de encarar as relações. Embora seja uma construção fragmentada, diluída, ela é construída para que o espectador mantenha-se atento e não deixe de ligar os fios conectores. Quando você acha que sabe o que está acontecendo, um novo acontecimento muda sua perspectiva sobre a obra.

Tudo isso se torna mais enriquecedor e verdadeiro com as atuações. Kate Winslet e Jim Carrey exibem uma química invejável nesta comédia dramática com requintes de ficção científica, denotando verdade ao relacionamento entre Joel e Clementine. Carey tem uma das melhores performances de sua carreira, se distanciando dos mocinhos de comédia romântica que estamos habituados a vê-lo. Ele mantém a voz em tons sempre baixos, contido, transformando Joel em uma figura melancólica e real – sendo qualquer um elo racional em qualquer tipo de relacionamento. Afinal, quem nunca viveu um romance Joel e Clementine? Wilkinson, Dunst, Wood e Ruffalo, que também integram a rede de relacionamentos do filme, recebem um destaque menor, mas se revelam multidimensionais e interessantes.

Kaufman explora ao máximo os conceitos que carrega no filme, principalmente ao refletir sobre como é a vida nesse momento, isso ocorre na cena que o casal passeia sobre o rio congelado, essa é a definição dos relacionamentos, da velocidade e rapidez dos acontecimentos na contemporaneidade. De acordo com Bauman, o homem atravessa o inverno sobre uma fina camada de gelo, se estacionar, ela quebra e o engole, mas são nesses pequenos momentos em que o gelo parte, que o homem se revela em sua totalidade e essência.

Ele apresenta mais um roteiro distinto com suas teses sobre a expansão do consciente humano, o espectador é realmente posto dentro da mente de Joel, levado a assistir de que forma o esquecimento ocorre dentro da mente humana, recurso utilizado através da queda de objetos – sinal de que há algo errado, escurecimento de telas, rostos apagados e música dessincronizada. Por que o processo de ir embora e apagar todas as memórias adquiridas não é simples e nem prazeroso de se fazer. É preciso estar sobre o gelo e torcer para que ele não se quebre ou ao menos salvar a memória.

Assim como na vida, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças mostra a dinâmica dos relacionamentos e da escolha de esquecer ou guardar as experiências que se tem no decorrer da vida. Como Joel descobre, as experiências são importantes para calejar e amadurecer as pessoas. Nem sempre esquecer é a melhor solução ou a com menos prejuízos. É por isso, que apesar de tudo, o filme se molda como um romance. Em que, como na vida real, você percebe que embora haja diferenças, os relacionamentos são construídos sobre elas, precisam delas para se erguer e a partir daí a química se torna imprescindível. Afinal o que são os relacionamentos se não aceitar e apreciar as características do outro, de forma que mesmo problemáticas para uns, se tornam qualidades ao olhar daquele pronto para recebê-las? Se tivessem apagado tudo jamais chegaríamos a essa descoberta, nos mostrando que, de fato, precisamos de nossas memórias, por mais dolorosas que sejam, afinal, elas podem nem sempre ser meramente lembranças.