Tudo que sempre ouvi falar de “Durval Discos” é que ele era um filme com Lado A e Lado B. Mais do que isso, este é um filme que retrata um período muito específico do Brasil no qual passávamos do LP para os discos — ambos materialidades de colecionadores hoje em dia —, as casas de bairro cediam espaço para os condomínios de prédios e os noticiários denunciavam diferentes sequestros. Não sei se há lados A e B, mas há uma costura de Brasil e Anna Muylaert, como sempre, nos entrega esse retrato de forma leve, atraente e reflexiva. 

Acompanhamos Durval (Ary França), que mora com a mãe (Etty Fraser) no mesmo local onde administra uma loja de discos, nomeada em sua homenagem. Devido ao cansaço da mãe, eles contratam Célia (Letícia Sabatella) como empregada, aceitando o então significativo valor de 100 reais, isso na São Paulo de 1995. Esse primeiro momento parece apontar para o desenvolvimento de uma comédia romântica clichê: Durval, que é um personagem estóico, preocupado com o purismo de ouvir música em discos, se encanta pela simplicidade da moça e seus dotes domésticos, enquanto a mãe a observa com diligência, dando os primeiros indícios de que sua lucidez não está em dia. 

Um olhar atento sob Durval

O protagonista aparenta carregar uma inocência jovial. Há um desejo de escapulir da monotonia da loja que possui cada vez menos clientes, ao mesmo tempo em que a comodidade de estar ali se alicerça. Seu gosto musical e a paciência com a qual lida com a mãe com claros sinais de demência indicam os bloqueios existentes para que viva em plenitude. Ele anseia por movimentação, o que a presença irreverente da personagem de Marisa Orth parece lhe trazer ao entrar a loja com intimidade e transitar como se estivesse em um ambiente confortável para si. Ela é uma possibilidade de uma existência alternativa sonhada, no entanto, conforme a monotonia da vida na loja de discos se esvai, Elisabeth também deixa de ser uma presença frequente e livre para transitar pela loja, sendo imposta a empecilhos criados pelo próprio Durval. 

O roteiro subverte as expectativas do público, contudo, ao mudar literalmente as perspectivas. Célia parece ser um potencial interesse romântico, mas some, deixando uma criança e um bilhete para que cuidem da menina por dois dias. Durval e a mãe se permitem mais uma vez se abrir para alguém de fora e acolhê-la, desta escolha se desenvolve o verdadeiro plot de “Durval Discos”. Enquanto para nós público, inicia-se um lado b responsável por oferecer um conflito bem arquitetado, condizente com um dos temores que assombrava a nação no período; Durval é atirado em um vórtice direto para os sete infernos da Divina Comédia. 

A grandeza da mis-en-scene

Nesse percurso, é interessante observar a mis-en-scene. A direção de arte e a cinematografia funcionam em complementaridade e poderiam contar a história sem a necessidade de diálogos. A câmera de Jacob Solitrenick (A garota que matou os pais) nos remete a um passeio por essa São Paulo “de bairro”, abrindo o filme com um longo travelling responsável por nos ambientar a vizinhança pacífica e amistosa, dando um tom de cotidiano tão presente nos filmes nacionais contemporâneos. Essa sensação é alimentada pela escolha constante de estarmos sempre na linha dos olhos de mãe e filho, quando ambos sentam à mesa, por exemplo, a câmera também nos convida a participar daquela ocasião. Já o cenário de Ana Mara Abreu (“É proibido fumar”, “Califórnia”), nos transporta para um ambiente amarelado, que mistura cultura popular brasileira com antiguidades, num claro contraponto entre as escolhas do filho e da mãe. 

Milimetricamente calculada, a quebra de ruptura causada pelo desaparecimento de Celia também acontece visualmente. A perspectiva fotográfica muda quando a garota entra na vida deles, assim como as cores e a saturação das cenas, a câmera passa a observar os seus passos e decisões, a distanciar-se dos personagens acompanhados até então. Ao mesmo tempo em que passa a se interessar pela menina, se manter na linha de seus olhos e captar o filme sobre essa perspectiva, como na belíssima cena em que ela anda de bicicleta pela loja de discos, antigo santuário de Durval, ao som de “Que Beleza” de Tim Maia. 

A escolha é um exemplar das sequências simples e memoráveis que “Durval Discos” contêm. Solitrenick encontra um ponto de equilíbrio entre tensão e calmaria, atitude e passividade, loucura e sensatez — dicotomias presentes no roteiro de Muylaert e bem administradas entre as reações de seus protagonistas. As coisas não são tão simples quanto a cena inicial tenta emular, há um absurdo que se desenvolve diante dos nossos olhos e nos prende, uma vez que a tragédia não só está anunciada desde a primeira virada de narrativa quanto se desenrola de uma forma surpreendente. 

Outro elemento importante em “Durval Discos” é a trilha sonora. O papel que a música exerce aqui poderia se equiparar às narrativas de John Carney e a “O Som do Coração”, dado o diálogo ímpar que mantém com a história contada. E este é um dos grandes méritos de Muylaert nesta obra: ela constrói um produto audiovisual completo, no qual cada peça da engrenagem executa sua função com êxito. A diretora e roteirista atesta audiovisualmente como Durval está aprisionado ao passado e, portanto, fadado a decadência. Logo, é sintomático que o momento, no qual encontra sua liberdade e respira aliviado após o espiral de loucuras para onde foi arrastado, seja não apenas do lado de fora da casa, sozinho, mas com a destruição daquele ambiente que lhe acorrentava. 

“Durval Discos” é uma prova do talento de Anna Muylaert, mesmo antes do aclamado “Que Horas ela Volta?”. A diretora conseguiu equilibrar cotidiano e absurdo em uma mesma balança sem pesar a mão, por meio de personagens atraentes, bem construídos e que nos irritam e emocionam na mesma proporção, além de construir uma narrativa pautada de fato na linguagem audiovisual. Tudo isso torna esta uma obra atemporal do cinema nacional.