Desde seu longa-metragem de estreia, “O Som ao Redor” (2013), a obra de Kleber Mendonça Filho vem estabelecendo um diálogo afiado com o cenário político do país na época de seus respectivos lançamentos.

Em 2016, “Aquarius” virou símbolo de resistência contra o golpe de estado que culminou com o impeachment de Dilma Rousseff. Tal repercussão ganhou proporção mundial após o protesto feito pela equipe no tapete vermelho do Festival de Cannes. Agora, em 2019, público e crítica aguardavam ansiosos por um filme que serviria como resposta aos desmandos de Jair Bolsonaro, o presidente que elegeu a cultura como sua arqui-inimiga e fez do cinema brasileiro o seu maior alvo.

Por essas e outras, a expectativa criada em torno de “Bacurau”, 3º longa-metragem de Kleber, era grande. Desta vez, porém, ele resolveu trocar o realismo social escancarado por um cinema de gênero repleto de metáforas e simbolismos. Para embarcar nesta aventura, o cineasta pernambucano optou por codirigir e assinar o roteiro em parceria com Juliano Dornelles, diretor de arte de seus dois longas anteriores e do curta “Recife Frio” (2009). A francesa Emilie Lesclaux, esposa de Kleber, é responsável pela produção orçada em R$ 8 milhões que estreia em circuito comercial no próximo dia 29 de agosto.

 DISTOPIA DE UM FUTURO “DAQUI A ALGUNS ANOS”

Bacurau é um pássaro noturno que dá nome a um pequeno povoado no coração do sertão nordestino. Nesse lugar, a população já conta com sinal de internet, tablets e celulares de última geração, mas ainda sofre com a falta de água, saneamento básico e medicamentos. Se a educação é precária, sobra oportunismo político e falta de assistência do governo, que só aparece em época de eleições para lhes oferecerem migalhas em troca de votos. Para aguentar o rojão, só mesmo vivendo sob efeito de psicotrópicos.

É nesse cenário que os habitantes de Bacurau se despedem de uma de suas moradoras mais queridas, Dona Carmelita, aos 94 anos. Pouco tempo depois, eventos estranhos começam a ameaçar a tranquilidade do local. Quando os nativos começam a ser atacados, não se sabe por quê e nem por quem, eles chegam à conclusão de que não podem contar com ninguém, já que quem deveria protegê-los prefere vê-los riscados do mapa. Mas “se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar”: um povo marcado por séculos de sofrimento não há de se render facilmente, e é assim que eles decidem se juntar com as armas que tem para resistir e, assim, continuar existindo.

Com essa ambiciosa mistura de western, aventura, suspense e ficção científica, o resultado de “Bacurau” é um filme diferente de tudo o que já se viu no nosso cinema. Através de uma narrativa convencional, mas repleta de cenas e diálogos contundentes, Kleber e Juliano abordam os perigos da modernização desenfreada e, por consequência, a perda da identidade cultural de um país, fazendo uma sátira mordaz ao preconceito regional e ao imperialismo americano.

O roteiro é dividido em três atos, ambos com ritmos bem diferentes: o primeiro, mais lento e de maior duração, apresenta o bucólico povoado e seus habitantes. Já o segundo revela a ameaça estrangeira, com um novo leque de personagens. Aqui, os diretores usam as próprias armas do inimigo e transformam “Bacurau” em um verdadeiro thriller, com a velha e eficaz fórmula hollywoodiana que deixa o espectador grudado na poltrona sem conseguir respirar. O terceiro, por fim, mostra o choque entre esses dois mundos.

Como nem tudo é perfeito, as maiores falhas de “Bacurau” se concentram no ato final que, embora extremamente empolgante, é um tanto apressado e deixa algumas pontas soltas. E mesmo que não prejudiquem o conjunto da obra, são aspectos que poderiam ter deixado o filme ainda melhor.

Já um de seus maiores acertos é o fato de não existir um personagem central. Aqui, o protagonista é o próprio povoado. Cada personagem tem sua importância e se destaca em um determinado momento, mas nenhuma delas domina a história.

O elenco primoroso inclui a participação mais que especial do alemão Udo Kier e da deusa Sonia Braga, que se despe da vaidade para surgir quase irreconhecível num papel completamente diferente de tudo o que já fez. A sempre ótima Karine Teles, uma das maiores revelações do cinema brasileiro nos últimos anos, também marca presença. Bárbara Colen surge promissora no início como Teresa, que volta ao interior para enterrar a avó, mas acaba perdendo espaço no decorrer da trama.

Com figuras desconhecidas, mas muito marcantes, o elenco nordestino também faz bonito. Merece destaque a atriz paraibana Danny Barbosa, que chama a atenção como a moradora que controla quem entra e quem sai do povoado. Mas, ao fim da projeção, o rosto que permanece na cabeça do espectador é o de Silvero Pereira, numa composição fantástica como o justiceiro Lunga. Sem dúvida, um dos pontos altos do filme.

Rodado no Sertão do Seridó, divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba, após um minucioso trabalho de pesquisa por parte da equipe, Bacurau é um projeto que levou uma década para ser desenvolvido. E desde sua primeira exibição no Festival de Cannes desse ano, onde foi laureado com o Prêmio do Júri (honra dividida com o francês “Les Miserables”, de Ladj Ly), a coprodução franco-brasileira vem colecionando prêmios e elogios em todos os festivais por onde passa. Não é para menos: realizado com um domínio técnico e artístico absurdo, não é exagero afirmar que Bacurau é um dos grandes eventos cinematográficos de 2019, um espetáculo que merece ser apreciado na maior tela possível.

DE SERGIO LEONE A GERALDO VANDRÉ: AS REFERÊNCIAS DE ‘BACURAU’

Kleber Mendonça Filho é um cinéfilo que virou crítico que virou cineasta. Sendo assim, é impossível assistir “Bacurau” sem notar a influência de mestres como Sergio Leone, Dario Argento, John Carpenter e Akira Kurosawa. Por outro lado, a dupla de diretores também reverencia Nelson Pereira dos Santos e o Cinema Novo de Glauber Rocha e Ruy Guerra (curiosamente, Cacá Diegues é um dos produtores associados de Bacurau). Uma verdadeira declaração de amor à sétima arte!

“Bacurau” é frenético e sangrento, com sequências capazes de impressionar até mesmo Tarantino, outra grande referência de Kleber e Juliano. A violência é gráfica sem ser gratuita, ilustrando perfeitamente o princípio de ação e reação em um lugar onde os fracos não têm vez.

O sangue explode na tela em contraste com o semiárido nordestino, tudo isso captado com maestria pelo fotógrafo Pedro Sotero em glorioso Cinemascope. Para que esse resultado fosse alcançado, os diretores pediram à produção que alugassem em Paris lentes anamórficas Panavision do final dos anos 60 para serem acopladas a uma câmera Alexa de última geração, adaptada especialmente para esta finalidade. Cineastas como Michael Cimino e Steven Spielberg já rodaram filmes com estas lentes na década de 70, mas é a primeira vez que elas são utilizadas em um filme brasileiro.

A trilha sonora, como já era de se esperar, é um show à parte. Temas instrumentais de filmes de John Carpenter aumentam o clima de tensão. A canção “Não identificado”, na voz de Gal Costa, cai como uma luva para a abertura. Se não fosse uma gravação antiga e conhecida, qualquer um poderia pensar que fora composta sob encomenda para o filme. Já a poderosa “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré, é a cereja do bolo. Composta para o clássico “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (1965), de Roberto Santos, a toada é executada em dois momentos de Bacurau de forma absolutamente emocionante.

Tantos atributos fazem “Bacurau” deixar de ser apenas um filme para ocupar um lugar de honra na história do cinema brasileiro, como uma obra de resistência cultural e política para esses tempos sombrios. Uma obra que causa um impacto tão grande, que continuará sendo analisada e discutida por muito tempo.

Desta vez, ao contrário de 2016, os diretores não fizeram protesto explícito durante a divulgação. Preferiram deixar o próprio filme falar por si e passar sua mensagem. Para aqueles que pensam que cultura é coisa de vagabundo, os letreiros finais de “Bacurau” relatam que a realização e distribuição do longa gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos. E fecha com uma lição que os nossos representantes já deveriam ter aprendido há muito tempo: “Além de ser a identidade de um país, a cultura é também indústria”.

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