Já faz tempo que a América Latina apresenta uma história manchada por conflitos. Da colonização até os mais recentes embates por conta do tráfico de drogas, esses momentos tem remodelado a região e criado traumas que não irão embora tão cedo. “Pássaros de Verão” tem consciência disso e tece um belo comentário sobre a escalada do tráfico no norte da Colômbia ao mesmo tempo em que fala sobre as perdas da tradição de uma população indígena local.

“Pássaros de Verão” é centrado no tráfico de maconha gerenciada por Rapayet (José Acosta), que, por acaso, descobre uma demanda deste produto por traficantes dos EUA. No início, Rapayet realiza esse serviço para conseguir comprar os animais necessários para o dote de sua futura esposa, Zaida (Natalia Reyes). Após verificar o sucesso e as possibilidades de enriquecimento, as famílias do casal se unem para melhorar suas condições de vida. “Pássaros de Verão” então desenvolve o seu roteiro entre os anos de 1968 e 1979, mostrando a ascensão e violenta queda deste clã.

Vale ressaltar que tanto Rapayet quanto Zaida fazem parte da etnia indígena Wayuu, e vivem em uma região desértica e empobrecida no norte da Colômbia. A relação entre os costumes locais e as crenças dos Wayuu é um ponto chave na construção narrativa do longa. O filme inicia em um plano bastante próximo de Zaida em um ritual de passagem para maioridade e depois inclui cenas com a interpretação de sonhos da menina para definir os rumos dos negócios da família.

“Pássaros de Verão” ainda expressa visualmente a diversidade cultural dos Wayuu através da bela fotografia de cores saturada de David Gallego e os figurinos de Catherine Rodríguez. Já a vibrante direção de arte de Angélica Perea apresenta a óbvia relação entre o início humilde da família e os exageros consumistas que invadem a cultura local mais para frente na película.

SIMBOLISMOS COM A HISTÓRIA LATINO-AMERICANA

“Pássaros de Verão” se constitui como um retrato complexo sobre anos e anos de interferência de povos estrangeiros nas civilizações originais da América Latina. Quando é apresentado o comércio de maconha, e a evidente bonança derivada disso, o roteiro de Ciro Guerra (“O Abraço da Serpente”) e Cristina Gallego faz questão de expor os efeitos da ganância nos costumes do povo Wayuu.

É interessante essa estratégia, pois demonstra a falsa promessa de melhorias que o mundo capitalista oferece para aqueles que estão na “periferia”. Ao mesmo tempo em que Úrsula (Carmiña Martínez), a anciã da família, quer continuar com suas crenças, Rapayet e Zaida vão se distanciando cada vez mais e assumindo cada vez mais traços das culturas externas. É visível a troca das tradicionais saias que Rapayet usa por calças compridas e o excesso de maquiagem de Zaida em contraste com sua cara suja de poeira no início da projeção.

Em uma cena, Úrsula ensina a filha (Aslenis Márquez) de Zaida a tricotar e a mãe da menina interrompe dizendo que ela tem que dormir logo. Isso se traduz como um choque, pois é nesses momentos em que a cultura tradicional é repassada para os mais novos. Quando há essa quebra, há uma perda de valores que mais para frente terminam dissolvendo esse senso de unidade em torno do povo Wayuu. Os próprios sonhos, tão marcantes e abundantes antes, vão se tornando mais escassos, expondo esse afastamento em relação aos valores ancestrais.

Isso é marcante no personagem Leonídas (Greider Meza), criado nesse momento de “transição” dos Wayuu. Visto como uma criança normal no início, depois se torna um adulto sem nenhum respeito pelos hábitos locais e totalmente consumido pelo alcoolismo. Essa perda também é sentida com o filho (José Naider) de Rapayet quando ele diz que andar de cavalo é algo chato e que quer aprender a pilotar um avião.

Essas transformações são representadas da mesma forma através da língua. Boa parte do filme é falado no idioma Wayuu, incluindo situações de decisões críticas. Porém, quanto mais o filme avança e os Wayuu vão conquistando mais riquezas, essa preocupação com a língua local vai sendo deixada de lado, dando vez para um predomínio de diálogos em espanhol.

Extremamente simbólico “Passáros de Verão” busca valorizar o imaginário Wayuu como algo determinante para a condução da narrativa. Através de falas como “você não pode pegar neste corpo” ou “você ainda carrega o espírito dele” e imagens de animais e suas representações para a cultura local, “Pássaros de Verão” mistura bem o que é real e o que é mito, respeitando a forma como os Wayuu veem o mundo.

“Pássaros de Verão” finaliza mostrando os reflexos deste consumo sem limites no momento em que insere uma criança andando sem rumo em um deserto. Um retrato claro sobre os efeitos atuais em uma região ainda vista como satélite de interesses estrangeiros e que viu seus costumes serem esquecidos, não entregando o mínimo de assistência para as gerações que vieram depois. Beirando entre o faroeste norte-americano e os dramas cheios de simbologia que formam a cultura latino-america, “Pássaros de Verão” é um excelente filme sobre algumas das causas para os problemas atuais da região e sua rica cultura local que foi se perdendo com o tempo.