‘O cinema brasileiro não presta’.
Essa frase clichê poderia ter caído em desuso tranquilamente na década de 2010. Afinal de contas, a diversidade da produção nacional com filmes de qualidade dos mais diversos gêneros – do musical à ação, da comédia ao terror, do documentário à animação – mostra que temos uma indústria com profissionais qualificados suficientes para fazer o que quisermos. Prêmios em Berlim, Cannes, Locarno, Sundance e centenas de festivais internacionais balizam isso.
O cinema nacional ainda conseguiu se desprender do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, o que permitiu vermos a cena mineira crescer com a produtora Filmes de Plástico em obras como “Temporada“, o Ceará brilhar nas telas com “Cine Holliudy” e “Pacarrete“, Goiás chegar com “Dias Vazios“, o Pará com Jorane Castro e, claro, o Amazonas com os longas de Sérgio Andrade. Isso, claro, sem contar com Pernambuco, a grande cena do cinema autoral do país.
Contando com filmes lançados no Brasil entre 1 de janeiro de 2010 a 31 de dezembro de 2019, cada integrante do Cine Set elege seu trabalho favorito de diretores nesta década. Confira:
ANA SENA
Tropa de elite 2: é um filme atemporal que explora de maneira genuína não somente a corrupção dentro do sistema de segurança, mas como a política usa o povo e as instituições como massa de manobra para ganhar as eleições. O que o diretor José Padilha faz nesta obra é expor tudo que já aconteceu e continua ocorrendo em nosso país. É um recorte que choca e incomoda nas mesmas proporções. Com atuações espetaculares e um roteiro que contém críticas, simbolismos explícitos, “Tropa de Elite 2” está na lista de clássicos brasileiros.
Menções honrosas: Arábia, o Nome da Morte e Que Horas Ela Volta?
CAIO PIMENTA
“O Som ao Redor”: a cena desta foto acima define muito a vida nas grandes cidades brasileiras: o crescimento desordenado esquecendo as origens – no caso de Recife, o mar – com pessoas em seus apartamentos sem contato com o próximo, enclausuras em seus medos, ódios, rivalidades e frustrações. De modo brilhante e sutil, Kleber Mendonça Filho faz um dos mais profundos estudos sobre a sociedade brasileira ao mostrar como as nossas tensões decorrem de um passado de opressão e violência. Como se pressentisse o que viria, “O Som ao Redor” deu os sinais de que algo havia de errado. E foi o cartão de visitas para o melhor diretor brasileiro da atualidade.
DANILO AREOSA
“O Lobo Atrás da Porta”: em uma década produtiva para o cinema nacional, O Lobo Atrás da Porta evidencia a ótima safra deste período. Fernando Coimbra faz um filme assustador que mostra até que ponto a obsessão pode levar a pessoa a praticar ações perturbadoras. Denso e intenso, com um viés psicológico que deixa todo o contexto da trama sugestivo, sexualizado e aterrador, O Lobo Atrás da Porta apresenta um domínio cênico claro e um grupo de atores qualificados, com o destaque para Leandra Leal, uma força da natureza avalassadora. Um thriller de suspense que deixaria o mestre Hitchcock feliz.
Menção Honrosa: Elena de Petra Costa; Tropa de Elite 2 de José Padilha; O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho.
DIEGO ALEXANDRE
Aquarius (2016): o filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho conta a história de uma jornalista aposentada que luta contra uma construtora pelo direito de permanecer no lugar onde vive, e talvez seja a obra que mais dialoga com o Brasil da década de 2010. Não é à toa que virou símbolo de resistência contra o golpe de estado que culminou com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Além da especulação imobiliária, o longa também aborda temas como memória afetiva, relações familiares e discute os padrões pré-concebidos para a mulher na terceira idade. E o melhor de tudo: trouxe a musa Sonia Braga de volta ao cinema brasileiro, numa das maiores interpretações de sua carreira..
DIEGO BAUER
“Bacurau” (2019): Bacurau pode ser visto como um símbolo do cinema de um país que viveu uma década excepcional, seja em quantidade ou qualidade de filmes. Um cinema que está perfeitamente conectado à produção dos principais países do mundo, mas que possui a compreensão de que o que nos difere deles é o que nos torna únicos. Bacurau é um filme raro, uma construção de cinema pensada para a massa (bebendo de John Carpenter), mas que ainda preserva o olhar irônico, seco, violento, e bastante cinéfilo de Mendonça e Dornelles, expressado nos seus filmes anteriores, Aquarius e O Som Ao Redor (Dornelles foi diretor de arte de ambos). Filme brasileiro da década que mais soube adequar uma ideia de cinema a uma maneira simples e direta de comunicação com o público. Seu reconhecimento não é por acaso.
Menção honrosa: Tatuagem, Boi Neon, Corpo Elétrico, Arábia.
HENRIQUE FILHO
“Tropa de Elite 2 – O Inimigo agora é outro”: existe aquela piada de que a continuação de “Tropa de Elite” foi feita porque muita gente não entendeu o primeiro filme. E muita gente continua não entendendo mesmo com essa continuação mais madura, mastigada e com discurso mais poderoso. Além de consolidar José Padilha como um grande contador de histórias, abrindo as portas para ele lá fora. A trama de Tropa de Elite 2, mais atual impossível, mostra um Capitão Nascimento (herói?) mais calejado e agora encarando as famosas milícias, o discurso final ainda é um soco daqueles. O cinema nacional teve uma década espetacular, inúmeros filmes que poderiam estar aqui: “Que Horas ela Volta?”, “Bacurau”, “Boi Neon”, “Arábia”, “O Lobo atrás da Porta”, “As Boas Maneiras”.
IVANILDO PEREIRA
“Que Horas Ela Volta?”: nesta década tão importante para o cinema nacional, difícil imaginar um filme que ressoe tanto quanto Que Horas Ela Volta? (2015). Uma obra que pega o espectador tanto no nível emocional quanto temático, e por isso mesmo é o filme desta década que melhor explorou e identificou as rachaduras na sociedade brasileira. Contando com a brilhante direção de Anna Muylaert e ancorado pelas atuações de Regina Casé e Camila Márdila, Que Horas Ela Volta? é o retrato de um país, mas mais do que isso: É um raro filme no qual o espectador tem vontade de dar um abraço nas personagens principais ao final da projeção.
LUCAS PISTILLI
“Que Horas Ela Volta?”: mesmo sob ataque, o cinema brasileiro continuou celebrado mundo afora nos anos 2010. O Brasil foi uma máquina de fazer filmes desafiadores em forma e conteúdo nessa década, mas o drama Que Horas Ela Volta? consegue, ainda que sem o delírio visual de seus contemporâneos, ser tocante e revolucionário ao mesmo tempo. Ancorado por uma surpreendente Regina Casé, o longa fala de um Brasil muito real ao mesmo tempo em que sugere outro – de sonhos e vontades que acompanham o país através das eras.
NATASHA MOURA
“Que Horas Ela Volta?”: quanta coisa preciosa feita nos últimos dez anos… “Que Horas Ela Volta?” e “O Som ao Redor” foram os responsáveis por direcionar de volta minha atenção aos filmes brasileiros. Mesmo com as suas imperfeições, a grande obra de Anna Muylaert representa a essência do nosso cinema nessa última década. Filmes de qualidade, marcantes e de histórias que nenhum outro cinema poderia contar.
Menção honrosa: Arábia e As Boas Maneiras. E duas merecidas menções à essa nova geração de cineastas brasileiros, com trabalhos que dão continuidade a potência e diversidade do cinema nacional.
PÂMELA EURÍDICE
“Aquarius”: Kleber Mendonça Filho é o nome do diretor que pode representar a resistência no Brasil. Durante a década, ele realizou filmes que representaram o momento político e ideológico que o país tem enfrentado. Nesse quesito, colocar uma mulher na terceira idade como símbolo mor da luta por manter as memórias em pé, vivas é um dos maiores exemplos de como o nosso cinema luta e resiste. Por isso, Aquarius e todas as lutas e resiliências que cercam o edifício são um retrato do Brasil pós 2014.
REBECA ALMEIDA
“Que Horas Ela Volta?”: apesar do impulso para escrever ‘Bacurau’ nesta categoria ser imenso, decidi ficar com um longa que eu já assisti algumas vezes e sempre me deixa com múltiplas reflexões sobre sua trama. Além das ótimas escolhas no roteiro, ‘Que Horas Ela Volta’ é um filme que continua envelhecendo muito bem e sendo extremamente relevante na sua problemática sobre empregadas domésticas, que é uma questão essencialmente brasileira, sendo assim, nada melhor para destacar nesta década na produção nacional.
Menções honrosas: De Onde Eu te Vejo, Bacurau, Aos Teus Olhos, Aquarius, O Filme da Minha Vida, Boi Neon, Alguma Coisa Assim.
SUSY FREITAS
“Bacurau”: E eis que, no apagar de luzes da década (dada a situação do cinema brasileiro em 2019, talvez literalmente), surgiu Bacurau (2019). Um filme tão envolto de simbolismos dentro e fora das telas que já nasceu parte essencial da História de nosso cinema com H maiúsculo. Pela sua capacidade de mobilizar o espectador psicologicamente, suscitar debates sociais, colocar-nos num estado de resistência e tensão (seja pelas leituras possíveis da trama, seja por tantos terem feito questão de pagar seus ingressos para vê-lo no cinema, ou seja para dizer que o longa de Kleber Mendonça Filho “não é tudo isso”), foi o meu escolhido para a lista. Ainda que Bacurau não tenha a sutileza no tratamento de seus temas como forte (basta conferir os filmes anteriores do diretor para perceber isso), até mesmo em sua secura ele se fortalece. Há tempos tão sombrios e lutas tão mandatórias que embrutecem os discursos como forma de refletir essa realidade.
Menções honrosas: Que horas ela volta? (2015), Aquarius (2016), Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava (2017), As boas maneiras (2017).
WALTER FRANCO
“O Som ao Redor”: Essa década foi claramente a melhor época para o cinema brasileiro desde a retomada e talvez desde os anos 60. Finalmente se reencontrando enquanto produção e fomentando uma produção voltada para maior diversidade de gêneros e maior consciência social em suas produções. É importante ressaltar o papel da ANCINE para este belo momento do Cinema Brasileiro. Dito isso, talvez o filme que melhor represente essa fase seja “O Som ao Redor”. Apesar da escolha óbvia ser por Aquarius, é com seu filme de estreia em longas que Kleber melhor conversa com o público sobre suas ambições artísticas e sobre o peso histórico da sociedade colonial no cotidiano brasileiro.
Menções honrosas: As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra), Boi Neon (Gabriel Mascaro), Bixa Travesty (Kiko Goifman, Claudia Priscilla) e Arábia (Affonso Uchoa, João Dumans).