“Rivalidades nunca são sobre ódio. Rivalidades são sobre dor”

A relação entre Bette Davis e Joan Crawford sempre foi mais que uma rivalidade. Os farpas trocados, a decadência quase que simultânea e os dramas pessoais eram um testamento do que é sobreviver em Hollywood. Bette era uma das maiores atrizes da Era de Ouro, duas vezes oscarizada e dona de papéis icônicos como Margo Channing em “A Malvada”. Já Joan era a estrela de cinema, dona de um lindo rosto que as câmeras amavam. Essa relação de farpas parecia estar mais galgada na admiração mútua (mas que nenhuma nunca confessaria). No entanto, a dicotomia amor-ódio pode até ser o pano de fundo da mais nova antologia de Ryan Murphy (American Crime Story, American Horror Story), “Feud”, mas a substância que alimenta o roteiro e as belas atuações do elenco é uma discussão mais profunda sobre envelhecer em uma cidade que só quer saber do novo.

Se “Feud” seguir o mesmo ritmo do piloto, o público apaixonado pela Era de Ouro de Hollywood terá no roteiro um verdadeiro parque de diversões. Os diálogos se equilibram bem entre o ‘camp’ e o classudo. A estrutura simula um documentário do tipo “E! True Hollywood Story”, com incursões de personagens como Olivia de Havilland (Catherine Zeta-Jones), ela mesma a protagonista de uma rivalidade conhecida, com a própria irmã, a já falecida Joan Fontaine. “Rivalidades nunca são sobre ódio. Rivalidades são sobre dor”, diz Olivia. Essa frase não só é um lembrete da briga entre as irmãs, mas também é o resumo perfeito do que “Feud” que abordar, pelo menos em seu primeiro episódio.

Resultado de imagem para feud serie

O piloto da série já diz a que veio nos primeiros minutos, quando vemos uma Joan cinquentona assistir à estrela do momento, Marilyn Monroe, ser premiada com o Globo de Ouro. Da plateia, a personagem de Jessica Lange sente o peso dos anos, peso esse que é acentuado com a primeira aparição da colunista Hedda Hopper (Judy Davis). Lembrada recentemente em “Trumbo” e “Ave, César!”, Hopper está especialmente ácida na pele de Davis. O poder de Hopper é evidenciado na primeira troca com Crawford, e ainda mais em outro momento do piloto, quando ela se refere ao lugar onde mora como “a casa que o medo construiu”.

Mas, o primeiro impacto que a série causa é a caracterização dos personagens. Lange não tem nada a ver com Crawford na vida real, mas a composição da atriz é admirável e a forma com que ela vive os dramas de uma estrela cadente deve lhe valer mais um Emmy no fim do ano. O primeiro episódio é todo dela, da cena no Globo de Ouro ao final com as primeiras filmagens de “Baby Jane”. Comparações com o infame trabalho de Faye Dunaway em “Mamãezinha Querida” são inevitáveis, mas Lange tem a seu favor um roteiro complexo, que vai além da caricatura de uma atriz ridicularizada. Já Sarandon tem menos espaço neste primeiro episódio, mas parece se divertir com a fama de malvada (!) de Davis. Ao mesmo tempo, a vulnerabilidade que os anos de ostracismo conferiram à eterna Margo Channing é vivida com maestria por Sarandon, sobretudo em uma cena em um camarim de teatro que quase emula o próprio “A Malvada”. E que os próximos episódios tragam mais de Judy Davis e Catherine Zeta-Jones, e da impagável Jackie Hoffman, que vive Mamacita, a fiel escudeira de Crawford – a cena em que ela dá uma de Emily em “O Diabo Veste Prada” e ajuda a atriz a lembrar o nome de todos os membros da equipe de “Baby Jane” é de morrer de rir.

A atração desse primeiro piloto é justamente os momentos de troca entre Lange e Sarandon. Há uma certa metalinguagem na escalação das duas atrizes, que vai de encontro ao tópico mais importante que a série aborda. Assim como Crawford e Davis, as suas intérpretes também já viram dias melhores no cinema. Se as estrelas de “Feud” viram os poucos bons papéis da época irem para as mãos de Katharine Hepburn, Lange e Sarandon não conseguem a mesma oferta que Meryl Streep, a única atriz sessentona que Hollywood acha que existe.

Resultado de imagem para feud serie

E essa é a maior discussão de “Feud”. No piloto, vemos uma série de rejeições à produção de “Baby Jane” com as duas atrizes nos papéis principais. Um produtor sugere estrelas mais jovens, outro quer aumentar o papel secundário da “vizinha sexy”. Até que chegamos a Jack Warner (Stanley Tucci). Ele se vê “forçado” a aceitar o filme, mas não sem antes despejar algumas “delicadezas” a Joan Crawford. Warner, vale lembrar, foi uma das pessoas que mais alimentou a rivalidade entre Bette e Joan, junto com Hedda Hopper. Ou seja: o trabalho de Stanley Tucci, que já foi de roubar a cena, deve ser ainda mais interessante nos próximos episódios.

A forma com que a indústria é retratada torna “Feud” um daqueles programas obrigatórios. O Oscar de 1963 deve ganhar um episódio todo, mas o fantasma da estatueta já se faz presente. É interessante ver como o prêmio tinha peso naquela época, a ponto de Joan Crawford não falar a seu agente que quer um grande papel de novo, e sim usar seu Oscar e dizer “eu quero mais um”. Ao mesmo tempo, vemos as transformações da indústria com a chegada da televisão: antes todo-poderoso, agora Jack Warner se vê obrigado a aceitar “Baby Jane” para tentar emplacar um sucesso de um gênero que a tevê ainda não havia explorado.

Feud” merece ainda aplausos pela atenção aos detalhes que poderiam ser facilmente despejados em um roteiro menos sensível. A insistência de Crawford com as Pepsis e como isso vai irritando Davis é um exemplo disso, assim como a forma com que Joan “emprega” os fãs que ficam na porta de sua casa – uma clara alusão à “calidez” da estrela de “Mildred Pierce” em relação à forma mais direta de Davis. Outro ponto digno de nota é o design de produção, que, além de fazer uma bela reconstrução de época, mostra as diferenças entre as duas. Enquanto a excêntrica Joan se recusa a abrir mão de um estilo de vida mais pomposo, a casa de Davis é mostrada em cores mais neutras, acentuando ainda mais a sua fama de “atriz séria”. As reconstituições de cenas de filmes clássicos das duas poderiam ser a única nota ruim desse primeiro episódio, mas a rapidez da montagem faz que seja apenas um momento camp em meio a um trabalho impecável de produção.

Resultado de imagem para feud serie

No próximo episódio, vamos ver mais da produção de “Baby Jane”. Se a direção e a fotografia já quiseram mandar um recado com a cena de apresentação de Bette Davis no set, nós já entendemos: vem muito mais por aí!