O título do ótimo documentário de Bryan Fogel, Ícaro, lançado recentemente pela Netflix, é certeiro nas alusões e implicações da jornada vivida por seus protagonistas. E que jornada! – do início pitoresco, em que Fogel, que é ciclista amador nas horas vagas, começa o que seria uma espécie de Super Size Me: A Dieta do Palhaço (2004) sobre o doping, até o final, em que, após uma trágica sucessão de eventos, o cientista russo Grigory Rodchenkov, chefe do centro de pesquisas antidoping daquele país, não tem escolha a não ser entrar para um programa de proteção a testemunhas e desaparecer, Ícaro é uma odisséia humana angustiante, e um olhar iluminador sobre o lado mais sombrio do esporte.

Ah, e também um exemplo do quanto a sorte pode influenciar o resultado final de um documentário. Eduardo Coutinho, diretor brasileiro que é um dos maiores nomes do gênero, construiu toda a sua carreira sobre o garimpo de grandes personagens, e Fogel teve a sabedoria de reconhecer o seu: Rodchenkov, que caiu de pára-quedas no filme, é uma figura excêntrica, enérgica, larger than life – o tipo de personagem que parece improvável sob qualquer descrição, e no entanto está lá, obliterando tudo o mais na tela. Sem ele, Ícaro seria uma boa reportagem sobre a onipresença do doping; com Rodchenkov, um animal totalmente diferente – e muito melhor.

Quando o projeto começou, em 2015, Fogel, um dramaturgo e fã de ciclismo, queria descarregar suas frustrações sobre a queda em desgraça de Lance Armstrong, o mítico (Ícaro?) heptacampeão americano da Tour de France, que admitiu ter feito uso sistemático de drogas para melhoria da performance em quase todas as suas competições. Na origem, Ícaro seria uma investigação sobre as falhas do sistema anti-doping, um experimento gonzo de Fogel para descobrir como Armstrong se safou durante tanto tempo – ou, talvez, no quê ele errou para ter sido flagrado. Para tanto, Fogel vai atrás dos nomes mais importantes da pesquisa antidoping nos Estados Unidos, e, por uma recomendação fortuita, acaba recebendo a orientação de Grigory Rodchenkov, chefe do laboratório russo de testagem de atletas. Efusivo, loquaz e levemente amoral, Rodchenkov se atira com entusiasmo ao projeto de Fogel, a ponto de propor, ele mesmo, vir aos Estados Unidos para contrabandear a urina do cineasta, a fim de prepará-la para driblar os exames.

Até esse ponto, o filme não é lá grandes coisas. Fogel é uma figura certinha, meio incolor, e a ideia de realizar um experimento radical de doping em si mesmo só prova que, sim, você ganha uma vantagem desleal sobre os demais e, sim, o sistema de testagem tem sérios furos – e não acho que essas sejam revelações extraordinárias. Mas a chegada do cientista faz surgir quase um outro filme. Em plena conspiração dos dois, estoura na Europa o escândalo do doping russo nas Olimpíadas de Inverno de Sochi, em 2014, e Rodchenkov de repente vira um homem marcado. Com informações devastadoras sobre a falsificação de material biológico, do lado russo, e da corrupção e leniência da Agência Mundial Anti-Doping (WADA), do lado regulador, Rodchenkov é um arquivo humano a ser apagado. Em desespero, ele pede ajuda a Fogel para se refugiar nos Estados Unidos. Leitor devoto de Orwell, Rodchenkov começa então um doloroso processo de derrubada de máscaras, expondo com coragem quase suicida o intrincado esquema russo, patrocinado pelos maiores escalões do governo (e sim, Vladimir Putin é apontado nominalmente como responsável), para turbinar seus atletas e esconder as evidências.

Ícaro é um filme movido por indignação e perplexidade, mas também – e principalmente – por empatia. Fica claro, desde o início, que Fogel está magnetizado por Rodchenkov. O jeito brincalhão e exuberante e o carisma do pesquisador russo também hipnotizam a plateia. De onde saiu uma figura dessas? Tanto mais aterrador, então, acompanhar a descida de Grigory aos infernos do medo, da paranoia, da solidão, e descobrir o quanto esses sentimentos ainda são prementes no país de Putin. Tal qual Winston Smith, o protagonista de 1984 que falsifica a história e adultera o conhecimento enquanto sonha com a rebelião contra o Grande Irmão, Rodchenkov criou instrumentos de detecção de doping que melhoraram em muito a descoberta de fraudes – enquanto perpetrava, a mando do governo russo, a maior e mais elaborada de todas. A amizade de Fogel por Rodchenkov o fez sair de seu próprio filme para dar protagonismo ao homem, criminoso assumido e vítima martirizada a um só tempo.

Pode-se duvidar das justificativas e racionalizações do cientista, mas não de sua corajosa tomada de posição, ou das abundantes provas que ele reuniu, e que ajudaram a iluminar a sanha por vitórias e dominação do regime russo nos esportes, que resultaram na polêmica expulsão de parte da delegação russa das Olimpíadas do Rio, em 2016. Num desdobramento ainda mais sinistro, o filme mostra – em conclusões um pouco forçadas, mas com bons argumentos – como o resultado russo em Sochi pode ter dado a munição que Putin precisava para começar a guerra contra a Ucrânia – antes dos Jogos, a popularidade do presidente russo estava em seu nível mais baixo; o triunfo esportivo fez a aclamação popular pelo político levantar voo. Também sobram farpas contra o acovardamento do COI (e de seu presidente, Thomas Bach, em particular) diante das inúmeras provas de trapaça e corrupção, e contra o silêncio da WADA (uma as melhores cenas do filme mostra Fogel discutindo com a alta cúpula da organização, que parece estar mais preocupada em manter sua aparência de credibilidade do que em investigar as possíveis falhas em seu sistema).

Continuamos, então, no plano das referências: Ícaro começou como Super Size Me, para se tornar um inusitado Citizenfour (sobre Edward Snowden). Mas Ícaro tem seus próprios méritos: além de ser uma investigação extensa e corajosa sobre um elemento sempre presente – e sempre incômodo – do esporte, o doping, e por extensão a busca obsessiva por resultados e as manifestações de superioridade política, Ícaro é também o testemunho de uma amizade, o relato do quão longe um homem, o diretor Fogel, foi para proteger e tornar pública a condição de seu amigo, o cientista Rodchenkov, que voou perto demais do fogo na sua tentativa de revelar a verdade sobre o doping na Rússia – e que, como o Ícaro do mito, teve as asas irremediavelmente queimadas no processo.