A certa altura de Locke, o engenheiro vivido por Tom Hardy explica ao colega de trabalho a necessidade de se utilizar a medida exata de concreto para garantir que a estrutura do prédio seja construída com sucesso – neste caso específico, C6, e não C5. Se um único elemento for incorreto na base, então logo surgirão rachaduras, o que poderá fazer o edifício todo ruir.

Toda essa conversa sobre concreto no filme (e acredite, você vai terminar o longa sabendo um pouco mais sobre construções e afins) poderia parecer inútil se não fosse uma metáfora da própria situação em que o protagonista se encontra. Depois de receber uma ligação que muda seus planos para a noite, o personagem-título Ivan Locke entra no carro e dirige pela estrada a fim de resolver um determinado problema – um erro cometido por ele e que vai provocar rachaduras inevitáveis na base de sua vida, seja na família, seja no trabalho. Afinal, como sua esposa dirá mais tarde, a diferença entre nunca e uma vez é a diferença entre bom e mau.

Isso é tudo que o diretor Steven Knight (mais conhecido como roteirista de Coisas Sujas e Belas, de Stephen Frears, e Senhores do Crime, de David Cronenberg) precisa para conduzir seu segundo filme: um homem e um carro. Toda a ação se passa em tempo real, com o protagonista dirigindo rumo ao seu destino, e interagindo pelo telefone com a esposa, chefe, colegas de trabalho, filhos e demais personagens. Fazer um filme preso a um só ambiente, com apenas um personagem em cena, é sempre uma escolha arriscada, mas Knight é bem-sucedido em sua empreitada graças a, principalmente, dois fatores: o roteiro bem escrito, de sua própria autoria, e a atuação segura de Tom Hardy ao volante, que possibilita o belíssimo estudo de personagem que se desenrola.

Não é por acaso que Locke é um engenheiro que trabalha com concreto e grandes arranha-céus. Ele é um homem que preza a solidez de suas ações – em outra das conversas com a esposa ao telefone, ela até mesmo comenta que o marido deixa marcas de concreto por onde passa quando chega a casa. É essa racionalidade quase implacável de Locke que o move. Conforme a noite avança, ele torna a repetir algo que se torna quase um mantra: “Eu vou fazer a coisa certa”. Fazer a coisa certa, no entanto, implica em admitir suas falhas e, nesse sentido, o carro se torna o confessionário de Locke, onde ele expiará sua culpa e viverá todo seu dilema moral no decorrer do filme.

A câmera de Knight acompanha esse clima quase claustrofóbico, que poucas vezes dá espaço para o próprio espectador respirar, fazendo que acompanhemos o estado de tensão crescente de Locke conforme as situações se desenrolam. A dinâmica entre ele e o ambiente sufocante do carro é quebrada apenas eventualmente, por tomadas externas e pelas luzes da estrada, que frequentemente passam pela tela difusas. Felizmente, mesmo com todo esse espaço de ação reduzido, o filme nunca deixa seu ritmo cair.

E, como mencionei antes, isso se deve também a Tom Hardy, principalmente. O ator britânico agarra o papel com a vontade de quem quer mostrar que está disposto a fazer mais e melhor, apenas à espera da oportunidade. Seu desempenho supera os elogios já recebidos por Guerreiro e Bronson. Durante todo o decorrer do filme, é através dele e apenas de suas reações que conhecemos não só como Locke age e o que ele pensa sobre si mesmo, mas também a ideia que os outros têm dele. Hardy tem que lidar com toda uma gama de conflitos em um curto espaço de tempo, e o faz com sucesso. As vozes que o acompanham ao telefone colaboram para isso – especialmente Ruth Wilson como a esposa que, de repente, tem que lidar com confissões inesperadas do marido, e Olivia Colman como uma mulher triste e solitária. Mesmo que não saiamos do carro junto com Locke, as situações desenhadas por essas vozes e os bem construídos diálogos do roteiro nos permitem “ver”, de certa forma, o que se passa fora dali.

O que nos leva finalmente à resolução, ou à falta dela. Se pode parecer meio decepcionante a princípio, é um final contundente e honesto com o que foi visto até então. Afinal de contas, Locke é sobre isso: um homem que, por mais sólido que julgue ser como os prédios que constrói, é humano e falível. O mais interessante da humanidade de Locke, no entanto, é que essa falha não o vai fazer parar; pelo contrário, ele assume seu erro, suas consequências e segue o caminho tortuoso que a vida de repente lhe oferece. E, assim, continua dirigindo.