É um pouco difícil elaborar uma análise crítica da série Sense8, porque Sense8 não se comporta como uma série “normal”. Evidentemente, trata-se de um projeto que transborda ambição e criatividade dos criadores, as irmãs cineastas Lana e Lily Wachowski de Matrix (1999) e o roteirista e produtor J. Michael Straczinsky, lembrado pela série de ficção-científica Babylon 5. Mas é também um projeto que não segue as convenções dramáticas mais comuns. A série, às vezes, serve de palanque para os criadores colocarem na boca dos personagens suas ideias sobre liberdade, sobretudo sexual, e política. Há alguns furos de roteiro e momentos estranhos e, por vezes, até ridículos. Mas há também momentos de inegável brilhantismo narrativo e visual que só poderiam mesmo ocorrer nesta série. E há também cenas nas quais é difícil não se comover com o que é mostrado na tela. Em suma, Sense8 é uma confusão, uma viagem, da qual, no mínimo, não se sai indiferente.

A primeira temporada, lançada em 2015 pela Netflix, conquistou uma legião de fãs com sua mistura de gêneros (drama, comédia, ficção-científica, ação) e seus temas de conectividade e aceitação. A produção de Sense8 é tão complexa que a segunda temporada chega agora em 2017, com um episódio “especial de Natal” preenchendo a lacuna – este especial foi lançado no fim de 2016 e tecnicamente é parte da segunda temporada. O Especial de Natal é meio que uma coletânea de “melhores momentos” de Sense8: de cara, a montagem fascinante dos episódios captura o nosso interesse, há aquele clima conspiratório com os sensates sendo perseguidos, há um pouco de comédia e romance – com direito a outra cena de orgia sensate (!) – e ação.

É interessante notar como Straczinsky e Lana Wachowski – Lily não participou desta segunda temporada, mas de acordo com declarações veiculadas online, ela poderá voltar na terceira – parecem comprometidos em explorar os dramas pessoais dos seus personagens. Eles fazem isso a ponto de deixar a trama conspiratória, envolvendo os mistérios do grupo e a perseguição do vilão Sussurros (Terrence Mann) como a parte menos interessante do seriado. Então, retomamos os dramas pessoais do ponto onde pararam: Sun (Doona Bae) ainda está presa, Lito (Miguel Ángel Silvestre) continua enfrentando a repercussão de ter saído do armário, Kala (Tina Desai) e Wolfgang (Max Riemelt) continuam enrolados e envolvidos nos seus problemas particulares, e Will (Brian J. Smith) e Riley (Tuppence Middleton) agora estão juntos, mas em fuga, buscando um jeito de eliminar a ameaça de Sussurros.

Mas há pelo menos uma grande mudança: Capheus agora é interpretado por outro ator – o anterior, segundo se conta, se desentendeu com as Wachowskis nos bastidores. O novo intérprete, Toby Onwumere, é introduzido meio de brincadeira numa cena – que se estende além do necessário, até perder a graça – sobre a questão de rostos e como eles são importantes. O novo ator imbui Capheus de uma natureza menos expansiva, é mais discreto e interiorizado, mas assume o papel com competência e alguns minutos depois já nos esquecemos do antigo.

Trata-se de um exemplo de evento real interferindo na ficção de Sense8, mas fora isso a produção da série parece ter controle total sobre o que se vê. E o que se vê é impressionante. A montagem da série continua espetacular, parecendo ter sido ainda mais refinada em relação à temporada anterior. Não são apenas as conversas filmadas em locais diferentes e coladas juntas que impressionam. São as cenas de ação e momentos muito inteligentes que deixam o espectador boquiaberto, como o dos sensates andando em fila e se tornando um; ou quando eles aparecem e/ou desaparecem entre os planos, ou após alguém passar em frente à câmera. O episódio 3, recheado de ação com a fuga de Sun e outras revelações, exploram ao máximo o potencial visual e criativo do conceito da série, assim o tiroteio do final do episódio 8. E a entrada em cena de novos sensates só adiciona ainda mais níveis para serem explorados pelos diretores dos episódios e os montadores da série.

Criatividade é o que não falta em Sense8. A série representa a visão completa de Wachowski e Straczinsky – eles roteirizam todos os episódios – e essa visão não parece conhecer restrições, abrangendo desde momentos realmente tocantes, como as cenas que abrem e fecham o episódio 9; até a ênfase nos ideais de rebeldia e de aceitação que a série promove. A cena gravada na Parada Gay de São Paulo é um exemplo disso, uma verdadeira celebração da vida e da diversidade sexual que contou com todo o elenco. Há até espaço para brincadeiras: uma das mais divertidas é auto referencial, quando surge em cena um hacker com a máscara do V de Vingança para ajudar a personagem Nomi (Jamie Clayton). As Wachowskis, claro, roteirizaram a versão cinematográfica da HQ de Alan Moore em 2006.

Apesar de todas as qualidades, há momentos também que deixam o espectador atento coçando a cabeça. Por exemplo, um dos personagens se livra subitamente do vício em heroína que aparentemente lhe consumiu meses; depois vemos um sujeito que diz ter “instinto jornalístico” revelar que guardou por anos (!) uma evidência importante, esperando pela chegada de um dos heróis. Uma referência boba a Alice – “Beba-me” – se revela apenas um suspense barato. Algumas cenas ficam no limite da pieguice, e outra num casamento desafia toda a credulidade. Ainda assim, o elenco se mostra empolgado o suficiente para pelo menos tentar fazer funcionar algumas dessas cenas – nesta segunda temporada, os destaques acabam sendo Silvestre, o mais simpático, e Bae, que diz muito mesmo com o rosto impassível de Sun. Aliás, também chega a ser curiosa a quantidade de vezes nos quais a atriz aparece com pouca roupa nos episódios. Ei, o mundo de Sense8 é um mundo sem inibições, certo?

Alternando entre momentos brilhantes e outros nem tão brilhantes, Sense8 se consolida como uma das produções televisivas mais diferenciadas do momento, uma verdadeira salada. E é também uma produção que reflete os nossos tempos: é algo reconfortante ver, hoje em dia, uma série apoiada na ideia de que estamos todos juntos nessa, e que a conectividade é boa, e abraçar as diferenças é não apenas positivo, mas será também a chave para a sobrevivência da humanidade. Nestes tempos, doses de otimismo e humanismo não fazem mal a ninguém. Mesmo que venham misturados numa salada maluca como essa.