No documentário, mais que no filme de ficção, o papel que a sinopse desempenha é mais que ingrato. Como atrair o grande público ao dizer em linhas gerais, por exemplo, que o filme acompanha o dia a dia de agentes de saúde em Cuba no trabalho de eliminar o mosquito da dengue? Que apelo surge disso? Por sorte, nem só de sinopse vive um documentário. Ao promover a sensação de encontro com o real, pontos de partida aparentemente simplórios têm o potencial de explorar a riqueza das entrelinhas do cotidiano. É nesse potencial que Aldemar Matias localiza o seu “El Enemigo”, dissecando-o com o domínio de um diretor mais que competente.
O curta começa frio e o espectador mais informado se pergunta como ele chegou ao Visions du Réel, grande festival em Nyon, Suíça, que terminou ontem. As imagens de arquivo que abrem o filme localizam o combate à dengue em Cuba desde os anos 1980 são ordenadas de maneira institucional e distante, e junto à trilha sonora instrumental, ganham um ar panfletário que em nada gera empatia. Mas essa é apenas a cortina que esconde o espetáculo antes dele de fato começar.
Sobre homens e mosquitos
Ao localizar seu tema em um grupo específico de agentes de saúde, Aldemar Matias desvela o palco em que a atuação dos profissionais mostra a riqueza do filme e da situação para o qual ele se volta e que, de início, parecia nada ter a oferecer ao espectador. “Contradição” é uma palavra mais que adequada para descrever o que se vê a partir de então: os agentes têm autoridade para entrar e inspecionar as casas, sendo confrontados diretamente por muitos dos moradores que eles, às vezes em vão, tentam conscientizar acerca do risco à saúde que a presença dos mosquitos representa. Mas, tal como os mosquitos, eles entram sem serem convidados e não são bem-vindos; aliás, até a câmera, que parece invisível aos personagens, parece causar menos incômodo na situação toda.
Os confrontos que vemos em “El Enemigo” são constantes tentativas de elaboração de discursos de poder e autoafirmação, ainda que nas formas mais absurdas.
A partir do trabalho dos agentes de saúde, realizado de modo bem precário, o documentário explora, de maneira inteligente e sutil, as relações de poder entre governo, profissionais e população. Para isso, a câmera opta por abandonar sua posição neutra, distante, e lança longos olhares a Mayelín Martinez, uma das funcionárias da unidade de saúde pública. O filme ganha um rosto para o qual podemos criar empatia e nos envolvermos no cenário cada vez mais insólito, em que a população destrata os agentes sem pena, como quem desconta a raiva e confronta quem quer que seja, menos quem realmente lhes ameaça.
Do outro lado, os funcionários têm seu próprio microcosmo. Eles se dividem entre aqueles que simplesmente não dão a mínima para o trabalho e aqueles para quem o Aedes Aegypti é o maior inimigo do país. E não, não é exagero: os funcionários entoam “brados de guerra”, logo nos primeiros minutos do documentário, antes de dar início às inspeções e fumigações. O paralelo com o modelo militar é inevitável.
Pelos olhos de Mayelín
Mayelín não é de falar muito; é justamente por causa disso que ela se põe em nosso lugar como uma semi-espectadora em “El Enemigo”. Impotente perante a falta de colaboração dos moradores de uma zona urbana nada amistosa e a necessidade de conter uma doença que matou muitas pessoas há algumas décadas atrás, ela se equilibra, de maneira graciosa, entre a quase obsessão de sua superior com a doença e o ar de abandono e descaso que escapa de cada detalhe como a má condição das residências ou as paredes desgastadas da feira cheia de mosquitos. Só lhe resta continuar a trabalhar.
É no senso de continuidade de Mayelín que nos envolvemos como público com “El Enemigo”. Seu olhar saturado enquanto uma agente discute com a dona de uma residência no qual focos de dengue foram encontrados, dá conta do quão absurdo pode ser o seu cotidiano. Nesse momento, apenas seu rosto surge na tela, e as vozes que brigam no interior da casa podem muito bem soar como demônios do interior de sua mente; em outro momento, seu rosto cansado e atento novamente salta solitário na tela, quando ela discute com colegas de trabalho que tentaram trapacear adicionando uma hora a mais no relatório que registra as fumigações (eles ganham por hora). O corte preciso some com as cabeças dos dois homens e acompanham apenas o olhar atento de Mayelín.
Os confrontos que vemos em “El Enemigo” são constantes tentativas de elaboração de discursos de poder e autoafirmação, ainda que nas formas mais absurdas. Em meio a um ambiente no qual a precariedade das condições de vida penetra a tela a todo momento, o ar de absurdo de toda a situação é marcado na cena final do documentário, no qual um funcionário cobre as ruas da cidade com a densa fumaça da fumigação. Se de início ela parece uma névoa de contos de fada, logo depois torna toda a tela cinzenta, passando a impressão de asfixia que, em Cuba, surge como uma metáfora mais profunda.
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