Quem me vê sempre parado, distante
Garante que eu não sei sambar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar 

(“Quando o Carnaval Chegar”, Chico Buarque, 1972)

A maior festa popular do Brasil não é nenhuma estranha ao nosso cinema. Lá está o Carnaval, por exemplo, nas roupas, nos gestos e na voz da mulher que é o maior emblema do Brasil na Sétima Arte: Carmen Miranda. Lá está ele, também, como o espírito animador de toda uma época do cinema nacional: a das chanchadas, que foram a nossa especialidade antes do Cinema Novo, e que guardam, aos olhos de hoje, uma alegria esfuziante e ingênua que parece vir de um outro planeta. Pior pra nós, aliás. 

Lá está o Carnaval, também, como pano de fundo para o romance condenado de “Orfeu” (1999), de Cacá Diegues, filme que, na encarnação original, dirigida por Marcel Camus em 1959, já havia conquistado o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, até hoje o nosso único genuíno bafejo na estatueta. Ou seja: o Carnaval é um artigo de estima e admiração no cinema brasileiro, e isso desde sempre. 

No entanto, esses exemplos apenas tangenciam um aspecto fundamental da festa: a oportunidade que ela dá aos brasileiros de respirar. O “momento de sonho” do samba de Tom e Vinicius, em que os brasileiros podem esquecer as agruras da vida e apenas festejar, para retornar um pouco mais leves à lida, está presente em grandes crônicas e grandes canções, mas onde encontrá-lo no cinema? Que filme já foi capaz de evocar esse desabafo tão necessário a milhões de nativos?

Encontrei um retrato aproximado dele em um documentário de Marcelo Gomes, “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, lançado em 2019 e disponível para aluguel na Apple TV, no YouTube e no Google Play (até há pouco constava do acervo da Netflix também, mas saiu de catálogo). Embora esteja no título da obra, o Carnaval é uma presença ausente: ele surge somente no segmento final do filme – mas é uma senhora chegada. 

“Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” mostra a vida na cidade de Toritama, no agreste pernambucano. Antes um lugarejo simpático e sossegado, Toritama experimentou um frenesi capitalista e se converteu num pólo nacional de produção de jeans. Seus moradores, agora, são orgulhosos empreendedores, donos de suas “facções” (como são chamadas as fábricas caseiras, de fundo de quintal mesmo, em que as roupas são confeccionadas), e entenderam que ser o próprio patrão é também ser o escravo de si mesmo. 

Na verdade, “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” é um filme sobre trabalho. Trabalha-se interminavelmente em Toritama, e o filme tenta compreender o que move essas pessoas, que dão todo o seu tempo, as suas energias, a sua saúde, para um ideal de enriquecimento e poder. Imagens do processo de fabricação dos jeans atravessam a coisa toda: a costura das peças, a lavagem e o tingimento, a aplicação de zíperes e botões, a criação de desenhos em laser. São sequências fascinantes, e também terríveis: o ruído incessante das máquinas e as montanhas de peças de roupa são símbolos recorrentes na obra, e sua esmagadora onipresença dá uma dimensão onírica, de pesadelo, ao filme.

Os personagens da cidade indagados por Gomes, mais do que explicar suas posições, parecem estar justificando a si próprios ao longo da narrativa: todos falam em ser donos do próprio negócio, que estão muito felizes em trabalhar duríssimo mas receber pelo próprio esforço, em vez de enriquecer outra pessoa, e que um dia vão aproveitar as recompensas que a azáfama certamente trará. Eles também mostram um comovente estoicismo diante de toda a repetição e fadiga de suas rotinas. Haverá, afinal, algum momento de descanso em Toritama, alguma pausa para relaxar, contemplar e viver, em vez de apenas produzir? 

É aí que chega, esbaforido e em ponto de ebulição, o Carnaval. Quando se dão conta de que a festa está próxima, os moradores se entregam a um outro tipo de frenesi: eles precisam conseguir dinheiro para viajar para as cidades litorâneas mais próximas, para passar uma semana ou duas em estado de graça. Afinal, todo o trabalho ainda não consegue garantir as merecidíssimas férias dos toritamenses (será assim?), mas há de melhorar. Gomes propõe um acordo a um deles: ele continuará no município, para documentar os dias de incomum tranquilidade, enquanto um morador irá levar uma câmera de mão para filmar a vida nos dias de folia. 

Temos, assim, as imagens mais pungentes de todo o documentário: a alegria infantil dos banhos de praia, a serena cumplicidade do casal que toma cerveja e ouve uma canção romântica, o senhor que descansa satisfeito numa rede, a bandinha que anima a rua tocando marchinhas. Vê-se, enfim, que o Carnaval existe também como uma forma de redenção para as vidas de tantos de nós: luta-se muito, sofre-se muito, dá-se muito com a cara na parede – mas o Carnaval vai chegar para, se não emprestar algum sentido a tudo isso, ao menos permitir a singela alegria de se perceber vivo, e em condições de brincar. 

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E quem me vê apanhando da vida
Duvida que eu vá revidar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

O que nos traz à canção de Chico Buarque, que inspira o título do filme de Gomes, e que já foi epigrafada duas vezes neste texto. Ela dá nome e mote para um outro filme: “Quando o Carnaval Chegar”, dirigido pelo supracitado Diegues e lançado em 1972, encontrável na muito bem-vinda coleção de filmes brasileiros disponibilizada pelo Globoplay. 

Trata-se, aqui, de uma afirmação ainda mais eloquente do Carnaval como último refúgio da alegria brasileira, o que tornou o filme anátema para parte da sisuda oposição à ditadura. Diegues, corajosamente, foi buscar na alegria e delicadeza dos musicais da época da chanchada o tom para sua trama (ou quase isso) brejeira, em que uma pequena trupe de artistas vive de se apresentar em espetáculos improvisados, em paisagens queridas do Rio de Janeiro. 

Paulo (Chico Buarque), Mimi (Nara Leão), Rosa (Maria Bethânia), Cuíca (Antônio Pitanga) e Lourival (Hugo Carvana) são um absoluto prazer de se ver, mesmo quando as atuações não chegam a ser dignas do nome – na verdade, isso só aumenta o desfrute. É muito divertido, por exemplo, ver a canastrice de Chico, que parece sempre acima ou abaixo do tom, e, talvez como provocação, é dado a recitar canções do repertório standard estadunidense (ri muito quando Rosa pergunta a Paulo se ele está mesmo apaixonado e ele irrompe num “Just One of Those Things” à Gene Kelly – Chico como Kelly é realmente algo para se ver). Nara, por sua vez, vive a doce, encabulada e também mui passiva Mimi, que, rejeitada por Paulo, faz de sua casa um permanente velório. Já Bethânia, como Rosa, é uma baiana mística, passional e aguerrida – donde se nota que Diegues moldou cada personagem à persona dos cantores no palco, com ótimos resultados. Os dois atores profissionais, Carvana e Pitanga, dão drible atrás de drible como comediantes, sobretudo Hugo, na sua imortal persona de malandro carioca, um espécime que, hoje em dia, só aparece como recriação artificial e diluída.

E há mais – Ana Maria Magalhães, uma das grandes musas de Ipanema, está realmente desnorteadora como a sensual Virgínia, que captura o coração de Paulo; José Lewgoy, invicto vilão de chanchadas, é Anjo, o bambambã (possivelmente bicheiro) que contrata a trupe empresariada por Lourival, com Wilson Grey como capanga; uma iniciante Elke Maravilha (ainda creditada como Elke Evremides) é a atriz francesa que seduz e desvia Cuíca; e outros mimos ipanemenses, como Odete Lara e Scarlet Moon, também agraciam a tela. 

As paisagens são belas evocações de um Rio que quase já não existe: uma Barra da Tijuca virgem, de belas praias desertas e muitas árvores; o hotel Quitandinha, em Petrópolis, na região serrana, ainda com uma vida artística movimentada; o desfile das escolas de samba no Centro da cidade, muito antes da Sapucaí. 

E as canções? Além do repertório autoral de Chico, uma das melhores safras de uma vasta lavoura (canção-título, “Mambembe”, “Partido Alto”, “Bom Conselho”, “Baioque”, “Caçada”, “Soneto”, todas, aliás, com uma sólida camada de melancolia até sob o esmalte mais reluzente), há as belas versões do trio para joias da ourivesaria carnavalesca, como “Cantores do Rádio”, “Formosa” e “Minha Embaixada Chegou”, além da delicada versão de Nara para “Ta-hí”, o primeiro sucesso de Carmen Miranda. E Chico sendo Gene Kelly.

“Quando o Carnaval Chegar” marchou alegremente pelo exame da Censura, o que levantou sobrolhos entre a esquerda mais radical – uma ala que Diegues qualificaria, anos depois, de “patrulhas ideológicas”, com sua mania de ditar o que era aceitável dizer e produzir nos anos de chumbo. Para esse grupo, as atrocidades do regime militar contra seus opositores e o estado de permanente sobressalto e desconfiança dos brasileiros para consigo mesmos tornavam um musical carnavalesco não só de mau tom, mas um verdadeiro acinte – como se a arte brasileira não comportasse mais espaço para a alegria e a transcendência. Quer dizer, além de não conseguir derrubar o regime militar, as patrulhas ainda tentaram privar o Brasil do Carnaval. 

Tanto mais justo, portanto, que Diegues escolhesse a festa como símbolo da libertação possível para os brasileiros. Suas imagens finais, dos foliões em pleno Carnaval do Centro, são emblemáticas da necessidade desse ritual para a psique do país. É Chico, mais uma vez, quem diz com precisão: 

Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada
Quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar