Os filmes do Godard para mim sempre foram emocionantes. Emoção daquelas de criar lágrimas nos olhos. A grande parte dos filmes do Godard que tive a oportunidade de assistir foram em uma Mostra de Cinema realizada pelo CCBB/RJ, em parceria com o Estação Botafogo, nos anos 90. As cópias em 35 mm tinham sido restauradas e estavam sendo exibidas talvez pela primeira vez no Brasil. Eis uma pequena relação dos filmes que mais gosto e que ainda possuem fragmentos que sobrevivem a minha memória. Adianto que é uma lista com começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem.

A combinação da abordagem de uma questão social sem moralismos com uma concepção subversiva da linguagem cinematográfica pode ser bastante educativa para que o cinema contemporâneo consiga ser relevante a longo prazo. Nana (Anna Karina) abandona o marido e o filho para tentar a carreira de atriz, mas acaba se prostituindo para sobreviver. Sob um preto e branco luminoso Nana decide se separar do marido em um plano onde vemos os dois personagens de costas. Conversando com o filósofo Brice Parain, Nana diz: “Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais se fala, menos as palavras significam”.

Em plena contracultura, entre revoltas, manifestações e um colorido avermelhado, temos um pequeno apartamento onde encontram-se cinco estudantes universitários franceses maoístas. A batalha entre o velho e o novo. O sobrevoo de um espírito anti-humanista. O triunfo do paradoxo. A trincheira com inúmeros exemplares do Livro Vermelho de Mao. A canção Mao-Mao. Os óculos ilustrados com bandeiras. A sociedade de consumo regurgitando o projeto revolucionário. Um Godard divertido que implode bombas debaixo do próprio assoalho. “E nós agora?” “Nós somos os discursos dos outros”.

“Godard é o símbolo máximo de tudo o que representou o cinema moderno, nessa utopia de transformar não apenas o cinema, mas também o mundo, e que essa revolução passava necessariamente pela invenção de uma outra linguagem. Godard uniu pensamento e criação como poucos (como Glauber, Eisenstein ou Pasolini). E continuava ativo. Nunca se vendeu ao mercado; nunca fez concessões em troca de bugigangas como reconhecimentos fáceis, troféus ou prêmios de festivais. Vai fazer muita falta num mundo em que o cinema cada vez mais se tornou uma mera mercadoria. Símbolo máximo do cinema como invenção e como resistência”.

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Marcelo Ikeda

Realizador, curador, crítico e professor de cinema

As diretrizes para um cinema que pretende ser eterno estão aqui. Em quatro semanas sem roteiro decidiu-se a história do cinema. Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) mata um policial que o persegue. Em suas andanças conhece Patrícia (Jean Seberg) e se apaixona ao som sedutor e mágico de Martial Solal. “Qual é a sua maior ambição na vida?” “Tornar-me imortal… e depois morrer.” Jean-Pierre Melville, Philippe de Broca, Jacques Rivette. Cortes que funcionam como alicerces para um estranhamento vital de um cinema que aperfeiçoa o seu público. “Não sei se estou triste por não ser livre, ou se não sou livre por estar triste.” Para escapar e trilhar caminhos perigosos é preciso ter fôlego.

“Eu gosto muito de Cinemascope”. “Oh, isso não foi feito para pessoas, só para serpentes e funerais”. Paul Javal (Michel Piccoli) é roteirista e vai trabalhar com o diretor Fritz Lang. Camille (Brigitte Bardot), esposa de Paul, é assediada pelo produtor americano do filme, Jeremy Prokosch (Jack Palance), ao mesmo tempo em que despreza o seu próprio marido. A escadaria de Villa Malaparte. A tentação de aderir ao cinema comercial e virar um produto pop da indústria cultural. A resistência apesar do desprezo. França x USA. “Então você me ama totalmente.” “Te amo totalmente, ternamente, tragicamente…”

Cansou de ser moderno e resolveu ser eterno. Esse aí quebrou tudo mesmo, não é todo mundo que pode dizer ter transformado o cinema – e depois nunca parou, foi um inventor até o fim. Que a terra lhe seja leve e ficam os filmes. E para quem não entendeu a solução é simples e maravilhosa: ver de novo.

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Daniel Caetano

Diretor, Roteirista, Produtor, Crítico de Cinema

“Uma ópera ou um filme”. Godard alvorece o século XXI assombrando mais do que nunca de que um filme é muito mais do que a historinha que está contando. “É quando uma história termina que ela começa a fazer sentido”.  As quatro estações de uma história de amor – encontro, paixão física, separação e reconciliação – pelo ponto de vista de três casais: jovem, adulto e velho. Pensar pela linguagem. “Cada problema, profana um mistério.” “Em troca, o problema é profanado por sua solução.” Emile Cioran. “Eu me preocupo se meu cigarro vai durar até a noite, meus cadarços até amanhã e meu fôlego até a semana que vem”. Esculhambar o predomínio do cinema norte-americano que é o mais temido batedor de carteiras dos cinemas do mundo. “Ação e reação, o casal mais antigo da história”.

“Quem não tem imaginação se refugia na realidade”. O mais espetacular filme em 3D da história do cinema foi realizado por Jean-Luc Godard. Um tchau/olá para a linguagem cinematográfica. Uma mulher casada e um homem solteiro se amam e se separam. A imagem é o mundo invisível. “Não se deve pintar o que se vê, pois não vemos nada. Só resta a possibilidade de pintar o que não se vê”. Um filme verdadeiramente de cinema. Me emocionei e chorei. “Resta saber até que ponto o não pensamento contamina o pensamento”.

O mundo não fica mais chato sem Godard porque ele fez o mundo ser menos chato irremediavelmente.

Não morre “o último grande artista” porque tudo que Godard fez é mostrar que estamos ainda engatinhando nesta seara.

Não é “o fim do cinema” porque Godard deixa um cinema que ainda falta muito para ser desvendado, numa espécie de mapa que aponta pro futuro.

Godard não morreu, porque Godard não morre.

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Bárbara Kahane

Roteirista, diretora e pesquisadora de audiovisual

Um Godard em Cinemascope e em Technicolor. ‘Pierrot’/Ferdinand (Jean-Paul Belmondo), casado, rico e entediado, reencontra uma ex-namorada, Marianne (Anna Karina). Eles fogem e são perseguidos por gângsters. O filme é permeado por um colorido deslumbrante em planos magníficos onde a harmonia entre fotografia, direção de arte e figurino configuram em uma técnica que consegue mover-se dentro do caos fundamental que prima na matriz dos pensamentos de Godard. “O que vou fazer? Não sei o que fazer?” repete Marianne caminhando à beira do rio enquanto Ferdinand lê um texto com uma arara no colo. Dessa cena vem um emblemático diálogo que começa assim: “Por que parece tão triste?” “Porque você fala comigo com palavras, e eu te olho com sentimentos”. Amor, filosofia, política, loucura…

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Ainda muito jovem eu adorava tanto o misterioso título em português quanto o cartaz desse filme com o rosto de Jean-Paul Belmondo pintado de azul em destaque e que via regularmente na programação de cinema dos jornais impressos nos anos 80. Me parecia estranho e sedutor, mas eu não tinha idade que me permitisse ver o filme na época em que estava sendo reapresentado com censura 18 anos, por causa do ‘anarquismo intelectual e moral’ da obra.

Alguns anos depois, já conhecendo melhor o Godard, houve uma exibição do filme na Cinemateca do MAM programada para o final de semana em duas sessões: as 16:30 e 18:30. Era um tempo em que esse tipo de exibição deixava o cinéfilo ansioso. Me programei para chegar com antecedência e conseguir um bom lugar na sala, mas acabei me atrasando porque calculei mal o tempo que ônibus levaria para chegar próximo a Cinemateca. Cheguei uns 10 minutos atrasados e de longe, ao avistar a bilheteria, percebi um certo vazio, não havia ninguém por ali, mesmo sabendo que poderiam todos estarem dentro da sala vendo o filme. Descobri que a sessão das 16:30 tinha sido cancelada por problemas no projetor. Quando tinha decidido ir embora frustrado e chateado bem que surge o Índio, o inesquecível projecionista da Cinemateca, que já me conhecia de vista de outras sessões na Cinemateca, que eu frequentava desde os meus 14 anos. Chegou para mim e disse: “O projetor já está bom. Topa ver o filme?”. Eu respondi: “Mas só tem eu!”. Ele respondeu: “E daí? Vamo lá!” Então aconteceu algo único e memorável: assisti sozinho o O Demônio das Onze Horas. Na saída recebi olhares estranhos do público que esperava a próxima sessão, que atrasou por minha causa, porque quando abriram os portões de saída da Cinemateca apenas um jovem saiu dali.

A cópia não era das melhores, mas me marcou profundamente porque já pensava em fazer cinema e não havia estímulo melhor para que nascesse em mim o mínimo de coragem e ímpeto para navegar em mares tempestuosos.

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Em uma entrevista durante o Festival de Cannes de 2014, Godard diz o que lhe serviu de inspiração para fazer o filme “Adeus a Linguagem”: “Foi escapar da ideia, se possível. Fazer sem ideias demais ou sem ideias preconcebidas. As ideias vêm pouco a pouco. Não há roteiro. Há 70 anos eu achava que era preciso ter um roteiro. Depois percebi que o roteiro vem não só depois da filmagem, mas depois da montagem”.