Para ser direto: quase todos os atores e atrizes que nós veneramos como grandes em sua arte são especialistas num certo tipo de papel, específico. Estamos muito mais habituados a ver, digamos, Robert De Niro nos estatelar com papéis de homens problemáticos, perturbados, do que mostrando a versatilidade em tramas românticas e comédias – onde, afinal, esse gigante tende a ser apenas competente, longe do fulgor incendiário de seus grandes desempenhos em um Taxi Driver ou Touro Indomável da vida.

Nada de errado nisso. Há espaço de sobra para intérpretes que construíram suas carreiras explorando as nuances de um tipo bem definido de personagem. Os verdadeiros camaleões, gente como Meryl Streep ou Sacha Baron Cohen, que conseguem a mágica de parecer completamente diferentes de um filme para o outro (no caso de Cohen, literalmente, porque o ator se especializou em criar tipos totalmente distintos em origem, sotaque e até cor de pele), é que são a gloriosa exceção.

Mas também não faltam casos de repetecos preguiçosos, de atores que escolheram se limitar a um único personagem de sucesso, quando tinham talento criar muitos mais, ou, o pior, de repetecos que são impostos, porque os executivos acharam que um ator se saiu muito bem vivendo um certo tipo de personagem, e bem poderiam explorá-lo até o último centavo (ou até a última gota de paciência do espectador).

Como aqui no Cine SET nós não resistimos a uma polêmica, vamos relembrar os casos de repetecos notórios do cinema – como acontecem, e quando isso funciona a favor (sim, é possível) ou contra os intérpretes que se submetem a eles. É importante ressaltar que esta será uma lista composta principalmente por homens brancos, já que, por questões centenárias de machismo e racismo arraigados da indústria, mulheres e pessoas de outros gêneros, cores e etnias dificilmente conseguem escapar aos estereótipos que Hollywood costuma reservar a quem não se encaixa nesse padrão irreal de homem branco e heterossexual. E, mesmo óbvio, vale dizer: com um bife desse tamanho, fica impossível ser abrangente e listar todos os exemplos possíveis – se você sentir que deixamos algum caso sério de fora, os seus comentários podem corrigir essa injustiça.

Repetição como camisa de força: quando um intérprete só recebe ofertas para o mesmo papel

Talvez o exemplo mais vil da influência da indústria sobre o trabalho de atores e atrizes é quando produtores decidem enquadrar um intérprete sob um rótulo.

A prática do character actor, como se chamam os artistas especializados em viver sempre os mesmos papéis nos filmes, por conta de não terem a beleza ou o carisma para serem protagonistas, ou porque eles correspondem a características étnicas do cenário onde a história é ambientada (pense nos vários coadjuvantes ítalo-americanos que se revezaram nos filmes de Martin Scorsese e na série Família Soprano nos anos 1990) é antiga, e garantiu carreiras sólidas para semi-anônimos como Billy Drago (que você já viu como vilão em incontáveis filmes de ação e no clipe de “You Rock My World”, de Michael Jackson) e Ernest Borgnine, que conseguiu ganhar o Oscar de Melhor Ator sem deixar de ser um eterno satélite nos filmes.

Mas há um buraco mais fundo. E quando um intérprete com todos os requisitos para ser uma estrela é obrigado a reprisar o mesmo papel, porque produtores sem imaginação simplesmente não conseguem vê-lo de outra forma – ou, pior, porque ele fica tão identificado a um personagem pelo público que este só tem interesse em vê-lo sob aquela persona?

Um dos casos mais conhecidos é o de Mark Hamill, o eterno (contra a sua vontade) Luke Skywalker de Guerra nas Estrelas. O sucesso massivo e inesperado do primeiro filme em 1977 colou a estampa de Skywalker com tal força em Hamill que este, ao final do terceiro capítulo em 1983, nunca mais atraiu interesse dos estúdios (ou do público) por nenhum outro projeto cinematográfico fora do universo Star Wars, mesmo tendo recebido elogios por suas performances teatrais em O Homem Elefante (que lhe escapou quando a peça foi adaptada por David Lynch em 1980) e Amadeus (idem – o ator que levou o emprego, Tom Hulce, é um caso ainda mais fulminante de sucesso fenomenal num papel e ostracismo depois dele) e por seu trabalho sombrio em Agonia e Glória (1980), o grande filme de guerra de Samuel Fuller, que só foi virar clássico nos anos 2000. Hamill foi obrigado a batalhar no teatro, em pontas em séries de TV e em trabalhos de dublagem, até que o novo restart da space opera de George Lucas, nos anos 2010 reacendesse a chama do sucesso cinematográfico para o ator – sempre como Skywalker, claro. Carrie Fisher, a sua colega de SW, sofreu um processo de superexposição similar, mas sua carreira mais versátil como escritora, dramaturga e roteirista a manteve mais ativa no jogo do cinema.

Um grande ator dos anos 2000-10 sob risco de cair nessa armadilha é o australiano Hugh Jackman. O imenso carisma demonstrado na pele do anti-herói mais querido do cinema – Wolverine – já o levou a ter de reprisar o papel em nove filmes (se não contarmos a ajuda de suas cenas antigas no impagável Deadpool 2), mesmo quando o talento do intérprete se revelou eloquente em projetos como Fonte da Vida (2006), O Grande Truque (mesmo ano), Os Miseráveis (2012) e Os Suspeitos (2013). Agora que Jackman finalmente aposentou o personagem (com chave de ouro, aliás – em Logan [2017]), fica a torcida para que os papéis não comecem a minguar, e ele não tenha de recorrer mais uma vez ao selvagem de adamantium para não cair no anonimato.

Um caso feminino é o de Michelle Rodriguez. Desde a sua estreia, no papel de uma boxeadora, em Boa de Briga (2000), ela ficou tão ligada a papéis de mulheres marrentas, agressivas, que quase não tivemos a chance de ver a boa atriz dramática que ela também pode ser, como em Batalha de Seattle (2007). Não que isso pareça realmente estar fazendo falta a ela – já que, toda vez que se precisa de uma atriz com jeito de durona, e que capriche na cara de má, ela consegue um trabalho. É só que ela (e nós) merecemos mais, e sabemos que Rodriguez pode.

A identificação de um intérprete com um papel, porém, é uma coisa quase positiva se lembrarmos o número de artistas que tiveram suas carreiras paralisadas por conceitos totalmente distorcidos de representação de gênero, raça e orientação sexual. Aqui encontramos o limbo sombrio que Hollywood reserva às atrizes que não querem ser limitadas a papéis de sex symbol, bem como o dos intérpretes negros e de demais etnias que não querem ser apenas uma escada para o colega branco brilhar, ou, pior, ser pouco mais do que um verniz exótico para dar autenticidade a um filme.

Quem lembra por onde andam, hoje, três das estrelas mais fulgurantes de Hollywood nos anos 1990: Sharon Stone, Kim Basinger e Meg Ryan? Enquanto as duas primeiras ficaram para sempre coladas à imagem de gostosonas, quase nunca sendo consideradas para papéis dramáticos “sérios”, mais elaborados, Ryan viu os papéis românticos, dos quais ela foi a rainha indisputada naquela década, minguarem à medida que o tempo foi lhe tirando as feições de menina.

O caso de Sharon Stone talvez seja o mais dramático. Depois de batalhar em filmes B durante os anos 1980, e de mostrar que, além da beleza, ela tinha carisma e talento de sobra, Stone foi lançada ao estrelato pelo diretor holandês Paul Verhoeven, que a escalou para um papel substancial no sucesso O Vingador do Futuro (1990), e, em seguida, no filme que foi a grande bênção e maldição de sua carreira: Instinto Selvagem (1992). Na pele da predadora sexual Catherine Tramell, com sua famosa (ou infame) cruzada de pernas, ela mostrou a grande atriz magnética que era – mas o público parece só ter reparado nas pernas mesmo, já que, pelo resto da década, todos os seus papéis de sucesso foram como vamp sedutora, tivessem eles a riqueza dramática de Cassino (1995) ou a absoluta falta de charme e graça de O Especialista (1994).

Quando Stone afinal quis ser levada a sério, a partir de A Última Chance (1996), Hollywood já não tinha mais uso para ela. Uma pena, porque, a julgar pelo charme de sua participação em Flores Partidas (2004), ou a intensidade dramática assustadora de sua ponta em Alpha Dog (2007), Stone poderia ter seguido os passos de uma Jane Fonda, e se mantido produtiva sem abrir mão da beleza. Executivos toscos de estúdio nunca a deixaram.

Basinger e Ryan também mereciam, cada uma, uma carreira bem mais prolífica do que a que elas vêm levando. De forma similar a Stone, Kim Basinger vinha galgando os degraus do estrelato, com pontas bem-sucedidas no cinema e na TV, até que um ensaio para a Playboy e a participação no incendiário (para a época) drama erótico 9 e ½ Semanas de Amor (1986) cravaram a imagem de mulherão sensual de forma indelével nas mentes do público e da indústria. Seu auge de popularidade, não por acaso, foi como a ingénue sexy Vicki Vale, do primeiro Batman (1989) de Tim Burton. Desde então, Basinger é mais lembrada como a esposa de Alec Baldwin (os dois foram um casal-símbolo de Hollywood entre 1993 e 2000) e por seu trabalho brilhante como a femme fatale Lynn Bracken, de Los Angeles – Cidade Proibida (1997), pelo qual foi vencedora incontestável do Oscar. Aí… bem, não se pode dizer que sua participação na saga Cinquenta Tons de Cinza, como a mentora e ex-amante do protagonista Christian Grey, seja um insucesso, dados os números massivos da série no box office, mas, assim como no reboot tardio de Instinto Selvagem (uma tentativa canhestra de Sharon Stone de voltar às graças do público), ver Kim, a essa altura do campeonato, tendo de se amparar em titilações eróticas para conseguir papéis é apenas triste.

A Meg Ryan nem foi dada a chance de tentar (e acertar ou errar) com um papel dramático de destaque. Sua carreira já ia por água abaixo na virada dos anos 1990 para 2000, por razões que eu só posso supor que tenham a ver com sexismo, tanto da indústria quanto do grande público. A série de comédias românticas bonitinhas, sanitizadas e imensamente bem-sucedidas que começou com Harry e Sally – Feitos um para o Outro (1989) e fez dela a “Queridinha da América” também foi uma barreira formidável para a evolução de Ryan como intérprete e figura pública. Desde o ano 2000, tentando superar a pecha que lhe foi imposta, Meg vem tentando a sorte em papéis dramáticos e filmes independentes, só para acumular uma triste sequência de flops, por parte de uma crítica e um público que nunca aceitaram a sua mudança de imagem. Ela até deu aquele passo, cada vez mais criticado, para demonstrar “maturidade” como atriz: ficou nua em cena, no thiller erótico Em Carne Viva (2003). Nada aconteceu, à época – e nada vem acontecendo desde então.

Essa tendência à estereotipação dos papéis femininos também produziria mais distorções cruéis na carreia de atrizes talentosas. Pensemos em Toni Colette e em todos os inúmeros papéis de mãe que lhe vêm sendo impostos desde que ela completou 30 anos, ou na completa ausência de papéis dramáticos para comediantes do gênero feminino, que impedem que atrizes com um claro potencial dramático, como Tina Fey, possam mostrar sua versatilidade. Vá lá, Lizzy Caplan conseguiu “dar o salto” em Masters of Sex, mas ela precisou mostrar “maturidade” como atriz – o jargão cínico de Hollywood para tirar a roupa nos filmes.

Samuel L. Jackson confirma que está fora de Capitão América 3O racismo, por sua vez, é o responsável pela parcimônia de papéis protagonistas para intérpretes afro-americanos em produções de grande orçamento, um mal que afligiu tanto a carreira de astros como Sidney Poitier, Morgan Freeman (mais sobre ele na terceira parte deste texto), e , que se tornaram estrelas apesar de estarem constantemente contrapostos a atores brancos, quanto a de nomes promissores, como Djimon Hounsou e Cuba Gooding Jr.. Todos, aliás, com personas cinematográficas bem definidas, o que lhes garantiu a familiaridade do grande público. No caso de atrizes negras, a situação é ainda pior: Whoopi Goldberg, com seu imenso carisma e talento cômico, seria uma estrela quase solitária no panteão de Hollywood, até que o degelo e a iluminação pós-anos 2000 começasse a arejar a fábrica de sonhos.

Atores e atrizes de séries de sucesso também entram nesse rol: espero, por exemplo, que o elenco de Game of Thrones possa ter uma carreira sadia e variada quando a série terminar, em 2019. Mas, não sei vocês, duvido muito.

Repetição por preguiça: quando um intérprete se contenta em reprisar o mesmo personagem por falta de ambição

Já falamos de como a indústria pode interferir de maneira paralisante na carreira de um ator ou atriz. Mas e quando o próprio intérprete amarra, por escolha, a camisa de força em que está preso?

É o caso de várias estrelas de Hollywood que despontaram cheias de garra e ambição, e agora, tantos anos depois, se contentam em repetir os tiques e afetações de seus personagens mais famosos. Exemplos? Que tal Johnny Depp, que, além de viver o capitão Jack Sparrow, de Piratas do Caribe, em sequências cada vez tediosas e desnecessárias, parece ter incorporado os tiques daquele personagem mesmo nas poucas vezes em que se aventurou para além dos sete mares? É só lembrar do Chapeleiro Maluco de Alice no País das Maravilhas (2011), ou do índio Tonto de O Cavaleiro Solitário (2013), para ficar em dois exemplos célebres. Enquanto isso, tirando o surpreendente desempenho em Aliança do Crime (2015), Depp quase não tem feito outras coisas que não filmes de aventura e comédias infanto-juvenis, quase nos fazendo esquecer o ator intenso e multifacetado que nos deu Ed Wood (1994), Medo e Delírio (1998), Profissão de Risco (2001) e Em Busca da Terra do Nunca (2004).

Na comédia, ninguém mais preguiçoso e disposto a insistir no erro do que Adam Sandler. Depois de estabelecer sua persona cativante em esquetes do Saturday Night Live, e de entregar vários filmes bastante simpáticos na virada dos anos 1990 para os 2000, Sandler se convenceu de que o seu personagem típico, um loser melancólico que sempre é chamado a despertar para a vida, atrairia o público, independentemente do quão medíocre fosse a embalagem. E, pelo menos por algum tempo, ele parecia ter razão: praticamente todas as comédias que ele fez entre O Paizão (1999) e Cada um Tem a Gêmea que Merece (2011) foram sucesso de bilheteria, mesmo que os filmes se sucedessem numa curva artística descendente atroz. Aí, de repente, a maré virou, as bilheterias de Sandler despencaram, e sua figura aparentemente inabalável começou a mostrar as rachaduras. Mas, graças à Netflix, Sandler não precisou tomar jeito – um acordo para realizar vários filmes para o serviço de streaming lhe permitiu continuar no mesmo caminho banal, sem ambição, repetitivo no pior sentido. Sorte a dele que diretores de prestígio volta e meia lhe estendem a mão, dando a Sandler a chance de brilhar em papéis dramáticos, como nos filmes Embriagado de Amor (2002), de Paul Thomas Anderson, e Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe (2017), de Noah Baumbach.

Outro que também poderia usar seu considerável talento cômico em coisas melhores é Marlon Wayans. Imagino que muitos de vocês nunca tenham esperado muita coisa do ator, que, junto do irmão Shawn, criou obras num limite confuso entre o hilário e o tétrico, como a série Todo Mundo em Pânico, o querido As Branquelas (2004) e O Pequenino (2006). Mas, sei lá, mesmo nos (muitos) momentos ruins desses filmes, o carisma abundante e a graça genuína do ator sempre tornaram possível me entregar de corpo e alma à experiência de assisti-los. E ele também sabe ser sutil e até comovente – lembremos os ótimos desempenhos de Marlon em Matadores de Velhinha (2004), dos irmãos Joel e Ethan Coen, ou no pesado drama Réquiem para um Sonho (2000), de Darren Aronofsky.

Três estrelas de prestígio junto à crítica também passaram a última década se engessando mais e mais em filmes pouco ambiciosos, quase sempre de ação, e raramente à altura dos desempenhos que os fizeram célebres: Denzel Washington, Liam Neeson e Tom Cruise.

Crítica: O Protetor, com Denzel WashingtonO primeiro, um dos atores favoritos deste que vos escreve, não tem mais nada a provar a ninguém; uma sucessão de trabalhos incríveis entre os anos de 1980 e 90 colocam Denzel no mesmo panteão de gente como Marlon Brando, Paul Newman, Robert DeNiro, Al Pacino e Jack Nicholson (todos brancos, eu sei), sobretudo o seu verdadeiro tour de force em Malcolm X (1992). Mas não deixa de ser desalentador ver esse gigante tão mal-aproveitado numa série de filmes de ação apenas competentes, como O Sequestro do Metrô 123 (2009), Protegendo o Inimigo (2012), Dose Dupla (2013) e O Protetor (2014). Ao menos Washington volta e meia sente um comichão e se lança a papéis mais desafiadores, como nos ótimos O Gângster (2007), O Voo (2012) e Um Limite entre Nós (2016). Digo esperançoso para mim mesmo que mais coisas boas vêm por aí, apesar de Washington já ser quase um idoso para os padrões de Hollywood.

liam neeson busca implacávelNeeson e Cruise têm uma dívida maior com o action film, que lhes garantiu uma reinvenção quando os papéis dramáticos mais interessantes já não lhes caíam às mãos. O primeiro experimentou um sucesso surpreendente com Busca Implacável (2008). Felizmente, ao contrário de Mark Hamill, Neeson já dispunha de um portfólio invejável, tendo participado de obras oscarizadas (A Lista de Schindler) e mostrado competência em dezenas de filmes dramáticos, românticos, cômicos, de terror e também de ação, tudo isso antes do primeiro Busca. Apesar da idade, igualmente avançada em anos-Hollywood, Neeson deu tão certo que quase tudo o que ele vem fazendo desde então são variações da fórmula Busca com outros nomes. Um breve alento veio em 2016, com a participação em Silêncio, talvez o melhor filme que Martin Scorsese já fez. Mas ainda é pouco – o veterano irlandês pode muito mais do que ligar para bandidos e explicar em detalhes o que vai fazer com eles, uma cena que ele repetiu em cerca de 296 filmes recentes (eu contei).

Crítica: Jack Reacher, com Tom CruiseCruise, por sua vez, também buscou refúgio no cinema de ação para tentar manter a estrela brilhando. Mas, desses três casos, talvez seja o que fez a transição mais graciosa. Não só Cruise leva o gênero muito a sério – ele cultiva o seu invejável físico com zelo, e sempre tenta realizar os próprios stunts, às vezes com resultados potencialmente horríveis para ele –, como conseguiu permanecer um astro na nova encarnação, enquanto Washington e Neeson ficaram restritos a orçamentos e circuitos B. Mas nem tudo são flores – a imagem pública do ator ficou permanentemente arranhada pela associação ferrenha com a igreja da Cientologia, além dos boatos de que ele seria um esquisitão em sua vida pessoal, algo que talvez lhe complique muito quando ele já não tiver mais o físico, ou o cacife, para bancar seus festivais de correria e explosões. Mas, até lá, Cruise volta e meia mostra do que é capaz quando adentra outros terrenos, como suas participações brilhantes na comédia Trovão Tropical (2008), o musical Rock of Ages: O Filme (2012) e a delirante biopic Feito na América (2017) – todas, aliás, mais inspiradas do que as típicas performances de Cruise em filmes de ação. Mas, convenhamos, não dá pra dizer que não tem valido a pena.

Menções honrosas a Nicolas Cage, um ator com uma considerável centelha de grandeza, mas que já pisou demais no coração deste pobre articulista, e Bruce Willis, um caso muito parecido com o de Washington e Neeson, e que volta e meia nos entrega um trabalho dramático sólido.

Repetição por opção: quando um intérprete se especializou num tipo de personagem e consegue trazer coisas novas a cada encarnação

Claro que o repeteco, em si, não precisa ser necessariamente uma coisa maligna, e pode produzir um efeito bem diverso de toda a frustração que vimos até aqui: atores que se especializaram num personagem bem definido, e passaram a vida refinando essa criação.

buster keatonDesses, o padrão-ouro tem de ser os grandes Charles Chaplin e Buster Keaton. Os dois cômicos mais inventivos e atemporais do cinema criaram, cada um, uma persona, e se agarraram a ela até a aposentadoria. Em seus grandes filmes, vimos como um personagem básico, um arquétipo, pode se prestar a um espectro quase infinito de emoções: o Vagabundo de Chaplin e o everyman de Keaton são figuras facilmente reconhecíveis e, no entanto, a premissa básica deles, com um mínimo de variações, inspirou um sem-número filmes maravilhosos: Em Busca do Ouro (1925), Luzes da Cidade (1931), Sherlock Jr. (1924), A General (1926)… a lista seria enorme.

Aliás, o cultivo de um alter ego costuma ser o segredo para as carreiras longevas de vários cômicos. Woody Allen se tornou uma das figuras mais prolíficas da história de Hollywood por ter, melhor do que ninguém, dado forma e substância aos homens inseguros, neuróticos e intelectualizados que viraram uma categoria à parte nas grandes metrópoles. O mesmo pode ser dito de Jerry Lewis e seu personagem tipicamente abobalhado, ou de Will Ferrell e seus protagonistas histriônicos, ou dos boas-praças Chevy Chase e Paul Rudd, da bem-intencionada mas atrapalhada Melissa McCarthyyou got it.

o iluminado jack nicholson stanley kubrickO drama também tem sua cota. Além de DeNiro, que já mencionamos lá em cima, temos outros nomes consagrados, como Jack Nicholson, especialista em criar personagens no limite da loucura (e alguns honestos e sinceros psicopatas); Al Pacino, que, depois da série fantástica e multifacetada de papéis nos anos 1970, virou uma espécie de campeão do grito – repare como quase todos os seus papéis dos anos 80 em diante têm alguma cena intensa com Pacino disparando foguetes verbais. O extraordinário é que ele talvez seja o único ator a fazer dessa histeria uma forma de arte – você nunca sente que é gratuito, ou uma limitação de talento do intérprete, mas a maneira ideal como aquela cena deveria estar sendo executada (para um contraexemplo, lembre das várias tentativas ruins de Nicolas Cage de fazer o mesmo). Morgan Freeman, por sua vez, mesmo sendo vítima da triste falta de papéis protagonistas para negros – quando, e se, isso acontece, provavelmente vai haver um ator branco com quase tanto tempo de tela quanto ele – construiu uma carreira extraordinária à base de sua presença magnética, cheia de serena autoridade (pelo menos até as acusações recentes de conduta sexual grosseira nos sets).

Também poderíamos incluir, aqui, todos os artistas que se notabilizaram em determinado subgênero – as estrelas da ação, do terror, do musical, do western –, gente que construiu sua carreira dentro das limitações estritas de um nicho, sem ambicionar brilhar com uma performance oscarizável ou uma parceria com um diretor de prestígio. À sua maneira mais modesta, pessoas como, digamos, Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Keanu Reeves e o saudoso Bela Lugosi, nosso eterno Drácula, também são exemplos de sucesso dentro de um mesmo e conhecido papel.

A provar que, no cinema como na vida, não há ciência exata, tivemos nesta lista alguns dos maiores atores de todos os tempos, gente que poderia muito bem ser considerada o exemplo máximo a ser seguido em sua arte – e, no entanto, também são abundantes os casos de gente que é igualmente gigante, mas que se define pelo oposto, por conseguir entregar algo diferente a cada novo papel. Bem que os grandes camaleões do cinema mereceriam uma lista própria de homenagens (e também, porque essa mania de polêmica não deixa a gente, de intérpretes atolados na incoerência de suas escolhas). Mas, até que esta afinal saia, este escriba tem de fazer uma média, e fingir que há outras preocupações na vida além do amor à Sétima Arte.