A instituição familiar é para o cineasta Hirokazu Kore-eda o que mulheres fortes são para Pedro Almodóvar e a burguesia europeia é para Michael Haneke, ou seja, uma fonte de inesgotável de bons dramas. Em seu novo filme, “Assunto de Família”, ganhador da Palma de Ouro no ano passado, ela não serve como ponto de partida, mas como parte do questionamento central da produção: em um mundo de necessidades básicas e relações transitórias, o que constitui um clã?

Para fazer essa pergunta, Kore-eda foi atrás do Japão pobre, pouco visto nas telas ocidentais, onde um grupo vive à margem da lei vivendo de bicos, esquemas fraudulentos e furtos a lojas. Quando dois deles encontram Yuri (Miyu Sasaki), uma garota negligenciada por seus pais, eles acabam incorporando-a à sua vida, ensinando-a os truques que usam para sobreviver.

Muito lentamente, pequenas pistas vão sendo deixadas pelo diretor, que também assina o roteiro, que nos permitem ver que, no grupo, ninguém é quem parece ser e que uma série de mentiras é o alicerce da família clandestina. No entanto, é principalmente através das crianças que vemos o quanto há de verdade naqueles laços.

Aos olhos de Yuri e seu irmão postiço, Shota, a preocupação dos adultos com eles é real e sua condição de pobreza, bem como as coisas que se veem fazendo para driblá-la, são circunstanciais. O menino encara o ato de furtar lojas com algo que o une a Osamu (Lily Franky), figura paterna que tem dentro da casa. Já a menina, que na sua casa inicial se via lutando inutilmente pela atenção da mãe, descobre em Nobuyo (Sakura Ando), esposa de Osamu, um cuidado que jamais teve antes de ser acolhida ali.

Quando os pequenos começam a se questionar sobre a razão de certos comportamentos de sua família, tudo começa a cair como um castelo de cartas, com consequências irreversíveis para todos. Absolutamente todos têm culpa no cartório, mas Kore-eda não está preocupado em análises morais, mas nos afetos profundos que surgem mesmo das situações mais adversas e desesperadas.

Em dado momento, questionado sobre se sentia vergonha de ensinar crianças a furtar, Osamu comenta, cabisbaixo: “Não sabia o que mais podia ensinar”. Em outro, a matriarca Hatsue, em uma viagem à praia, menciona a felicidade de ter o grupo por perto, impedindo-a de ter uma morte solitária. Em um terceiro, Nobuyo e Yuri comparam marcas de ferro, claramente produto de uma agressão, que têm em comum.

Esses recortes apontam para o grande ponto de Kore-eda aqui. Mesmo sem laços sanguíneos, o que seria essa transmissão de costumes, esse companheirismo através dos tempos e gerações e essa partilha de histórias comuns senão um seio familiar? Doce e ao mesmo tempo contundente, “Assunto de Família” é um filme que faz todas essas perguntas sabendo que não pode oferecer respostas fáceis. Elas talvez nem importem: famílias, no final das contas, podem ser tão flexíveis quanto pessoas.