Em 1972, o mundo não poderia esperar por um filme que combinasse a propulsão e o senso épico do western, uma história clássica de ambição desviada para o crime, uma vibrante cor local e um novo ritmo musical, que em breve tomaria conta do planeta. 

Em vários sentidos, Balada Sangrenta (The Harder They Come, 1972), o primeiro e, por muito tempo, único trabalho do diretor e roteirista jamaicano Perry Henzell, era um produto tão novo e diferente, para a época, que poderia muito bem ter acabado ali mesmo, em Kingston, sem deixar maiores vestígios. Vários fatores pesavam contra: o sotaque dos atores era tão carregado que o filme, mesmo rodado em inglês, precisou ser exibido com legendas nos EUA; a produção era nitidamente mambembe, com mudanças abruptas na trama e na qualidade das atuações; e o principal: afinal, quem diabos eram essas pessoas que usavam dreadlocks intrincados, consumiam e vendiam ganja, e almejavam o sucesso nessa música estranha? 

Por tudo isso, Balada pode ser considerado um grande cartão de visitas da Jamaica para o mundo. Nesse filme estão resumidos, brilhantemente, a cultura e a sociedade jamaicanas, com um olhar empático para a grande massa daquele país: os descendentes de escravos africanos, largados à própria sorte na ilha, enquanto a elite branca ostentava o luxo em minúsculos rincões de prosperidade e conforto. 

E mais: com sua trilha sonora vibrante, que traz as maiores estrelas da primeira encarnação do reggae, o rocksteady, o filme preparou o terreno para a explosão do ritmo na década de 1970, quando praticamente todos os grandes músicos pop do planeta o gravariam, além de dar ao mundo o seu primeiro superstar nascido em um país periférico – Bob Marley. 

Nada mal, não? E, no entanto, a estreia de Balada nos EUA, após um circuito triunfal em seu país de origem, quase passou batida. Não fosse um pequeno grupo de devotados espectadores, que, na base do boca-a-boca, fizeram a marola crescer até se tornar uma onda colossal, Balada teria sido apenas uma nota de rodapé no ano de 1972. Nessas cinco décadas desde então, ele é tido como um clássico dos midnight movies, como eram chamadas as produções independentes ou estrangeiras que ganhavam status de cult nos Estados Unidos (o nome vem do horário das sessões, meia-noite, que era o reservado aos filmes “de arte” nos cinemas comerciais). 

No enredo, Jimmy Cliff dá vida a Ivanhoe “Ivan” Martin. Um rapaz trabalhador vindo da zona rural, ele chega à capital, Kingston, disposto a sair da miséria. Ivan é enganado e tem seus pertences roubados logo ao chegar, mas o rude boy aprende rápido e é ambicioso, e acaba adentrando a órbita de figuras influentes da comunidade onde mora. Primeiro, ele é acolhido por um pastor, com quem se desentende. Após o episódio, ele resolve tentar a sorte na carreira musical. A canção que compõe, “The Harder They Come” (que dá o título da obra) agrada um poderoso empresário musical e vira um sucesso, mas Ivan não recebe direitos autorais, e continua na mesma. 

A solução vem de um amigo envolvido com o tráfico de maconha. Embora proibida por lei, a erva é comercializada nas comunidades pobres da capital por pequenos vendedores, sob os auspícios de policiais corruptos. Ivan melhora de vida, mas logo percebe que o esquema rende muito pouco para os comerciantes, ao mesmo tempo em que enche os bolsos da polícia. Sua rebeldia ganha a simpatia dos demais vendedores, mas o coloca na mira dos policiais e de seus capangas na comunidade. O inevitável chega: Ivan precisa matar os rivais que o querem tirar do caminho, e sua inesperada habilidade no gatilho e nas fugas o tornam um nome conhecido nacionalmente, para seu deleite e a exasperação dos tiras, além de empurrar “The Harder They Come” para o topo das paradas jamaicanas. Quando a trajetória de Ivan enfim termina, ele já é uma lenda entre os miseráveis do país. 

Essa trama, que tem tanto em comum com outros anti-heróis icônicos do cinema dos anos 1970 – a época de Bonnie & ClydeTerra de NinguémTaxi DriverUm Dia de Cão e vários outros –, tem também, como a maioria desses filmes, um pé na realidade: Ivanhoe Martin é o nome do lendário criminoso jamaicano conhecido como “Rhyging” (na gíria jamaicana dos anos 1940, alguém “invocado”, “do mal”), que, numa série espetacular de assaltos e assassinatos em 1948, se tornaria uma referência para a classe operária daquele país, uma das mais pobres e submetidas a violências do mundo. Tal como Ivan, Rhyging tinha um dom especial para se safar nos confrontos com a polícia; também como Ivan, Rhyging tinha um ego enorme e um tino para a publicidade: antes da série de crimes de 1948, ele já era famoso pelos discursos apaixonados em sua própria defesa nos tribunais, e, assim como no filme, ele realmente posou para fotos publicitárias, que enviaria depois aos maiores jornais de Kingston. 

Por trás da evidente perpetuação do mito, porém, Henzell, em parceria com o dramaturgo Trevor D. Rhone, cercou a trama de comentários sobre a vida na Jamaica “de baixo”. As cenas iniciais da obra, que detalham o dia-a-dia nas ruas imundas da capital, têm a urgência documental de filmes como Operação França e Caminhos Perigosos. A atuação de Jimmy Cliff nos soa tão autêntica porque, além de seus inegáveis carisma e talento, ele conheceu muitas das mesmas dificuldades que Ivan. E quase tudo no filme tinha (e ainda tem) uma correspondência desalentadora na vida aqui fora: a indústria musical realmente era comandada por homens autoritários e violentos, que exploravam e enganavam seus artistas sem dó (Clement “Coxsone” Dodd, o dono do lendário Studio One, era uma figura assim); a venda de maconha realmente era o único sustento para inúmeras famílias vivendo na pobreza abjeta, com a anuência e a supervisão de policiais; e havia vários outros elos unindo polícia, política, tráfico de drogas e armas e a manutenção da miséria na ilha. (Aliás, a linda atriz que enxota Ivan de sua mansão, no início, é Beverly Anderson, que viria a ser esposa de Michael Manley, o presidente eleito naquele mesmo ano de 1972 na Jamaica) 

Mais marcantes do que as duras imagens de sobrevivência no país, porém, são as de sua cultura vibrante. É um deleite ouvir o autêntico patois das ruas, admirar os praticantes da quase desconhecida, à época, religião Rastafári, e, principalmente, apreciar a música que atravessa o filme. É um festival de talentos de primeira grandeza do reggae: Toots and the Maytals, Desmond Dekker, The Melodians, o próprio Cliff. Numa época em que Bob Marley ainda não tinha aparecido com força, a trilha de Balada Sangrenta foi o primeiro tremor significativo do reggae na paisagem pop. Recomendo procurar a edição especial do álbum, facilmente encontrável na internet, que traz um segundo disco com vários outros singles cruciais na transição do rocksteady, musicalmente mais simples e com letras sobre a vida dura na cidade e os temas românticos de sempre, para o reggae, que trouxe um ritmo mais elaborado e letras de engajamento político e espiritual. 

O destaque absoluto, claro, é Cliff, que, além das duas canções principais do filme (a faixa-título e o leitmotiv “You Can Get It If You Really Want”), seus primeiros grandes sucessos, contribuiu com o que talvez seja a sua criação definitiva: a sofrida balada “Many Rivers to Cross”, que une uma parábola bíblica sobre as atribulações deste mundo à performance mais comovente da carreira do cantor. Por sinal, apesar desse primeiro triunfo em sua terra natal, Cliff é, até hoje, uma figura à parte na cena reggae da Jamaica, com um público muito maior nos Estados Unidos e na Europa do que entre seus conterrâneos. Além de não se alinhar ao movimento Rastafári, que ganhou vulto no país na década posterior a Balada (ele se converteu ao Islã no mesmo período), Cliff também se aproximou do pop e funk mais tipicamente americanos, trabalhando com artistas como Kool & the Gang e La Toya Jackson. Não deixe, porém, de conhecer a estupenda discografia desse artista, principalmente o registro ao vivo In Concert: The Best of, de 1976, que traz a guitarra do mestre Ernest Ranglin. 

E há, ainda, os bastidores do filme. Perry Henzell, um branco herdeiro dos agricultores britânicos da ilha, estava imbuído de empatia para com os aflitos de sua terra quando se propôs a filmar o primeiro longa-metragem jamaicano (sim, Balada também é isso). A parceria com Rhone despertou o entusiasmo de muitos empresários locais, alinhados às tendências de esquerda que vicejavam na ilha na época da eleição de Manley. Após o sucesso do filme, que começou devagar mas ganhou muita força graças às sessões da madrugada, Henzell estava com tudo, e tinindo pra rodar o sucessor de Balada. A crise do petróleo, porém, veio, e arrancou o chão de Henzell e equipe. O material filmado em 1974 só ganharia um primeiro corte em 2006, ano da morte do diretor. Apesar de receber várias propostas de Hollywood nos anos seguintes a Balada Sangrenta, Perry Henzell disse que só faria novos filmes se pudesse fazê-los na Jamaica, e com o mesmo olhar que aplicou a Balada: realista, com o pé no chão, colocando, tanto quanto possível, os verdadeiros problemas, e a verdadeira linguagem das pessoas que fazem a Jamaica cantar. 

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