Depois do sucesso estrondoso de O Sexto Sentido, muito se esperava que o trabalho seguinte do indiano M. Night Shyamalan fosse tão marcante quanto o filme do menino que via pessoas mortas. Com certeza, Corpo Fechado (2000) decepcionou muita gente, principalmente por não seguir na sua essência, a cartilha do anterior, no caso, o suspense sobrenatural e a reviravolta final impactante.

O novo filme era uma homenagem às histórias de super-herói, numa época que eles ainda não eram celebridades ou cultuados no cinema – o X-Men de Bryan Singer seria ainda lançado e o Homem-Aranha de Sam Raimi só veria o sol cinematográfico dois anos depois. Lembro-me de quando assisti Corpo Fechado no cinema naquele ano. Apesar da enorme curiosidade, acabei por vê-lo duas semanas após a estreia, já que viajava de férias com a família. Quando retornei, a maioria dos amigos já tinha conferido e, é claro, ficaram frustrados. Afinal, guardava poucas semelhanças com O Sexto Sentido, além do final considerado “decepcionante” perto do anterior. Junta-se a isso as críticas mornas das revistas de cinema e da internet em relação ao filme.

O que poderia ser um banho de água fria apenas me estimulou a conferir o novo trabalho do indiano. Saí da sessão aturdido com o que presenciei. Durante toda a sessão, tive a impressão que Shyalaman sussurrava baixinho no meu ouvido, que o filme era direcionado a minha pessoa e que conversava diretamente com meu lado fã, de alguém que passou a adolescência lendo HQs para criar mundos fantásticos como forma de lidar com as inseguranças da juventude. É como se o filme dialogasse comigo: sim, heróis podem existir na realidade e este é o mais perto do que eles podem existir. Corpo Fechado é uma declaração de um fã para outro, uma das melhores odes à temática de super-herói, só que dentro de uma roupagem sóbria, melancólica e densa. É explorar o normal frente ao misterioso e fantástico para descobrimos quem realmente somos.

Por isso, amigos e amigas do Cine Set, apesar de gostar de O Sexto Sentido, considero Corpo Fechado a obra-prima do indiano, a sua masterpierce. E explico os motivos que me fazem vê-lo como um clássico, um dos meus filmes favoritos da década de 2000, conforme vocês podem conferir no top 5 abaixo (caso não tenha visto o filme, não leia a partir daqui pois há alguns SPOILERS):

1) A questão do duplo

No cinema, a questão do duplo sempre ganhou olhares fascinantes. Fogo Contra Fogo, de Michael Mann, e Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, são os melhores exemplos disso. Em Corpo Fechado, a construção da relação entre o protagonista (David Dunn – Bruce Willis) e o antagonista (Elijah Wood – Samuel L. Jackson) ganha contornos originais, até porque, diferente dos quadrinhos, a dinâmica é construída gradativamente e encenada em conjunto. Shyamalan reinventa este “contar”, onde o herói descobre-se na sua jornada de autoconhecimento através do seu antagonista e vice-versa. Fica nítido que tanto o herói e vilão apresentam dificuldades de se ajustarem socialmente, isolados do universo que os cercam, mas tão próximos estranhamente um do outro. São dois lados de uma mesma moeda, dentro de um filme de herói que não segue a linha narrativa no sentido convencional do que conhecemos hoje.

2) A encenação visual de mundo

Shyamalan em Corpo Fechado atinge o seu auge artístico, com cenas que vão de takes sem cortes a enquadramentos elegantes e inusitados. A sequência inicial em que o personagem de Willis flerta no trem com uma mulher, consegue ser ao mesmo tempo, simples e elegante. E o que dizer da encenação do suspense da melhor qualidade quando o filho de David aponta a arma para ele? Poucos cineastas conseguem fazer nossas mãos suarem e mexerem com tantos sentimentos contraditórios na relação de pai e filho como nesta cena. Há outros vários momentos espetaculares que parecem retirados das páginas de uma HQs – você fica admirado com o indiano, na forma como ele posiciona a câmera em pontos inusitados para captar as imagens nas sequências da piscina e na briga na casa. Em outras palavras, Shyamalan mostra o significado da linguagem cinematográfica e como encená-la para o público.

3) Os simbolismos inseridos no texto

Toda a estrutura narrativa do filme é marcada pelos simbolismos, principalmente nas antíteses: o bom x o mau; morte x vida; o real x fantástico; o forte x o frágil. Shyamalan constrói seus arquétipos dentro da mitologia, seja de fatos reais da psicologia humana, seja na mitologia fantástica dos quadrinhos. Todo o universo encenado por ele é marcado pela simbologia das cores (o herói David com suas cores verdes representativa do renascimento e o antagonista Elijah com o roxo e preto, reflexos do seu caráter soturno). Tanto herói e vilão são multidimensionais, complexos, bem delineados pelo roteiro com várias metáforas. É o lado ordinário da humanidade dialogando com o fantástico e encontrando resultados satisfatórios na transição entre dois mundos opostos – mas que se atraem consideravelmente.

4) Um olhar diferenciado sobre o mundo dos super-heróis

O que me fascina no filme como um todo, é como ele desenvolve as temáticas psicológicas e dramáticas do enredo. Grande parte da sua essência é trabalhar o propósito da existência do ser humano. Aqui, os personagens são desconstruídos para serem reconstruídos, e as escolhas são elementos determinantes para guia-los no encontro da sua real identidade. Um processo nada fácil, para personagens imperfeitos. Bruce Wilis e Samuel L. Jackson vestem bem a carapuça dos seus personagens. O primeiro constrói seu David Dunn melancólico e real. Já Jackson traduz toda a inquietação e introspecção de Elijah Price evitando os tons explosivos que sempre marcaram os seus papéis. Por isso Corpo Fechado é um suspense introspectivo a conta-gotas, que valoriza a abordagem realista e a construção de personagens em detrimento da ação. É sútil, simples e econômico, sem exageros ou espalhafatoso na ação. Uma obra antítese do cinema de super-herói, porque parte de questões comuns.

5) Fechando as arestas

“Eles me chamavam de Senhor Vidro”. A frase de Elijah para David é a verdadeira cereja do bolo. Um final que pontua todos os arcos propostos, mas que não tínhamos notado apesar das pistas deixadas. Ele não é impactante como de O Sexto Sentido, mas é fiel a sua premissa. Delimita a linha que separa os opostos e a fronteira tênue entre herói e vilão. É um final que trata o espectador com dignidade e inteligência, que evidencia a originalidade e simplicidade do roteiro. Shyamalan dá sua última tacada de mestre (daquelas de arrepiar) para nós deixar impassíveis com intensidade doentia da “revelação” que nada mais é do que uma verdadeira declaração de amor cinematográfica aos fãs de quadrinho. Fico imaginando como seria a recepção de Corpo Fechado, caso lançado hoje, em uma realidade favorável aos filmes de heróis. Talvez a maioria reclamaria pelo seu ritmo lento e nada acessível a fórmula padrão do universo Marvel. Mas tenho certeza que assim como o recente A Bruxa, muitos perceberiam que na sua essência, existe um olhar carinhoso, fascinante e factível em relação ao mundo fantástico dos super-heróis. São poucos filmes que são amores à primeira vista e continuam a te deixar fascinado a cada revisão.