“Estou aqui para relembrar quem foi Augusto Góngora” 

Com essas palavras e uma câmera desfocada, Paulina Urrutia, ex-ministra da cultura do Chile e companheira de Gongora a quase 25 anos, nos introduz a “A Memória Infinita”, filme dirigido por Maitê Alberdi, indicado ao Oscar de Melhor Documentário. Essa é uma história de amor, vulnerabilidade e o poder da memória e do afeto ancorados em nós, no nosso corpo e na nossa alma. 

Alberdi nos entrega um retrato íntimo e sensível do complexo cotidiano de um casal que convive com o Alzheimer. Constrói-se um cenário no qual à medida em que ele se reconhece, também desnuda a relação dos cônjuges para o público. Desta forma, o que poderia ser lido como uma história de superação, torna-se uma narrativa de afeto, concentrada em mostrar como a conexão e o (re)encontro de almas é mais forte do que o apagamento memorial. 

O que a cineasta chilena propõe para nós é uma clássica história de amor que tem como opositor a fragilidade do corpo humano. A partir dessa conjectura, duas abordagens chamam atenção em “A memória infinita”: a ironia da vida e as escolhas da direção. 

Góngora e a reconstrução chilena

Durante toda a projeção, há inserções de matérias televisivas produzidas por Góngora, salientando a importância do personagem central na luta contra a ditadura chilena. Como jornalista, ele participou ativamente não só em denúncias diretas ao golpe militar, mas também na regeneração do país após esses momentos sombrios. Através de programas jornalísticos que difundiam a cultura chilena em seus mais variados âmbitos, o comunicador contribuía junto ao processo de reestruturação da nação. 

O roteiro de “A Memória Infinita” nos encaminha para um cenário macro no qual se percebe o valor da memória e do reconhecimento das fragilidades de um país para o seu futuro e é, neste percurso, que a narrativa pessoal ganha mais força. Uma vez que chega a ser irônico e triste o fato de alguém que lutou pela preservação das lembranças esteja perdendo a sua aos poucos. Isso me faz recordar uma das cenas mais simbólicas do documentário, na qual Pauli lê uma dedicatória feita por ele para si, em 1997, em que aborda a importância e o peso da memória. Afinal, sem ela, não se tem identidade. 

O olhar de Paulina e Alberdi

Por outro lado, contempla-se a paciência e o amor que Paulina dedica ao companheiro, evidenciando o quanto o sentimento é capaz de transcender qualquer barreira. É sensível e tocante como ela se angustia em vê-lo nos momentos de demência e inquietações, mantendo a calma na tentativa de passar segurança a ele, explodindo, no entanto, quando as sombras se esvaem. 

Vale ressaltar que as percepções de Paulina sobre Góngora são importantes para que aqueles que não conhecem o seu trabalho se familiarizem com sua figura. Parte disso advém, principalmente, das escolhas tomadas por Alberdi na construção dessa narrativa. Enquanto acompanha a rotina do casal é como se sua câmera fosse invisível, registrando desde os momentos mais afetuosos e singelos até os acessos mais impiedosos do Alzheimer. Com poucas intervenções como recurso narrativo, o resultado se torna emocionante e muito dolorido, especialmente para quem já vivenciou uma situação como essa. 

Góngora e Pauli são duas figuras públicas que possuem um catálogo de imagens coletadas pela mídia e produzidas por eles mesmos no decorrer de sua trajetória, gosto como a diretora utiliza essas imagens como um paralelo da importância de suas jornadas para a política chilena e como transpõe essas informações de maneira leve e sem exposição para os diálogos. Admito que, para mim, é interessante acompanhar o passar do tempo na vida das pessoas que são mumificadas pelo audiovisual e isso é mais um aspecto positivo em “A Memória Infinita”, uma vez que sempre que esses registros existirem, a memória também se preservará. 

Alberdi nos entrega um filme que nos abraça ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre a finitude da vida. Somos embalados e acalentados por um romance calejado de fragilidade e resiliência, mas que história de amor infinito não é assim?