Se “Matrix” encontra paralelos diretos em “Metrópolis” ou “Blade Runner” dentro do universo de distopias e ficções científicas, pode-se dizer que “Matrix Resurrections” está mais próximo de obras como “Crepúsculo dos Deuses” ou “O Jogador” como análise ácida e cirúrgica da indústria do cinema norte-americana. Isso certamente é o suficiente para irritar grande parte dos fãs da série protagonizada por Keanu Reeves, desejosos de ver na tela novamente as espetaculares cenas de ação de volta com os personagens queridos em seus uniformes icônicos e as já esperadas ligações da trama com filosofia e religião.  

Na era do fanservice, de agradar ao público e as redes sociais a qualquer custo a ponto de se tornar refém das expectativas geradas, Lana Wachowski chega com os dois pés na porta e faz de “Matrix Resurrections” uma antítese do padrão estabelecido em Hollywood. Fica em segundo plano como é possível Neo (Reeves) retornar após os acontecimentos de “Revolutions” ou a nova missão de Morpheus (Yahya Abdul-Mateen Ii) ou como se dará o reencontro do Escolhido com Trinity e até mesmo as sequências de ação; aqui, o foco encontra-se no duelo de uma artista, sua obra e todo processo criativo contra um sistema que tenta dominá-lo das formas mais cômodas possíveis, longe de qualquer risco para maximização de lucros e geração de franquias infinitas. 

Desta forma, Lana Wachowski encontra um alter ego em Thomas Anderson, o Neo na realidade virtual lá do primeiro filme. Seja prostrado em sua cadeira ou ao lado de medíocres metidos a gênios dentro de uma sala de roteirista com mil ideias estapafúrdias de como tirar mais um caça-níquel de “Matrix”, game revolucionário criado por ele em 1999, o personagem de Reeves aparece aprisionado e petrificado diante daquele sistema em um déjà-vu atualizado do longa original. A conversa de Anderson com o chefão do estúdio e a revelação da cobrança da Warner Bros para uma nova trilogia cinematográfica na marra escancara esta metalinguagem a níveis quase confessionais. 

Afinal, junto com a irmã Lilly, Lana não se guiou pelo padrão do que um executivo de grande estúdio trilharia para ela. Em vez de viver de “Matrix” para toda a vida criando uma franquia à la “Piratas do Caribe” ou “Velozes e Furiosos”, ela resolveu se arriscar com “Speed Racer” (fracasso de bilheteria) e, especialmente, com o ousado “A Viagem” (fracasso ainda maior). Se “O Destino de Júpiter” foi uma concessão a este cinemão genérico que também não deu certo, “Sense8” seria o acalento e o encontro com o público que sempre tentou falar – até, claro, a Netflix cancelar de modo intempestivo à série após a segunda temporada.  

Apresentar “Matrix Resurrections” poderia ser uma concessão, mas, acaba sendo uma bem-vinda resistência dobrando uma aposta com risco extremo de dar errado – errado, óbvio, do ponto de vista comercial. 

FAN SERVICE? POR FAVOR… 

“Amor é a gênese de tudo”. Esta frase com a dedicatória de Lana para os pais já nos créditos finais demonstra que o retorno de “Matrix” se deve, acima de tudo, ao carinho e paixão de todos os envolvidos com a série. E isso exala ao longo dos 155 minutos de “Resurrections” com diversas cenas da trilogia inicial surgindo em paralelos com os novos acontecimentos, inclusive, com bastante destaque aos contestados “Reloaded” e “Revolutions”, fazendo justiça aos dois ótimos filmes. De todas as autorreferências, a exibição da clássica sequência da escolha da pílula azul ou vermelha no primeiro filme em um teatro de estilo clássico com a projeção cortando os personagens gera uma aura mítica a um momento já imortalizado.  

Wachowski e a dupla de roteiristas David Mitchell e Aleksandar Hemon, entretanto, não estão dispostos a cair na autocongratulação de um fanservice atrás do outro. “Matrix Resurrections” vai além ao repensar conceitos bases da trilogia original, sendo, inclusive, crítico a si próprio. Sobra zoeira para o lendário bullet time, técnica imortalizada no longa de 1999 no tiroteio contra Neo, e até para o estilão sério demais ao trazer um Yahya Abdul-Mateen II completamente descontraído como Morpheus. 

Acima de tudo, Lana repensa o conflito central da série para discutir a binaridade simplificadora a ponto de realizar uma quebra que nenhum fã de “Matrix” sequer imaginava. Com isso, “Resurrections” amplia seu escopo para um contexto mais amplo em que máquinas e humanos podem se ajudar, antigos rivais dão às mãos (mesmo que momentaneamente) e o antagonista surge mais difuso vindo em hordas de zumbis hiper conectados e através de disfarces mais sutis – qualquer semelhança com a vida real, aqui, não é mera coincidência.  

Neste processo de repensar conceitos, as próprias cenas de ação perdem aquela estética de movimentos perfeitos e a busca pela última joia dos efeitos visuais como na luta de Neo contra as centenas de Smith em “Reloaded” ou na épica batalha final de “Revolutions”. Em “Matrix Resurrections”, tudo aparece em uma escala menor e não apenas pelas condições de Neo, Trinity ou dos agentes; dentro do conceito de reinvenção e ressignificações da série, Lana busca tirar o peso destes momentos até como forma de provocação ao seu público e à própria indústria. 

Diante disso, não espero “Matrix Resurrections” quebrando recordes de bilheteria, sequer ameaçando “Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa” do topo da arrecadação nos cinemas mundiais. Tem tudo para ser rejeitado pela maioria do público até mais do que foram “Reloaded” e “Revolutions” e, quem sabe, virar cult daqui uns anos. “Fãs” da franquia dirão ser um desperdício de tempo e que estragaram a memória da infância/adolescência. Que quem lacra não lucra e o velho chorume de sempre. 

Movimentos e reações totalmente calculados e compreendidos por Lana Wachowski, uma cineasta capaz de compreender que o risco faz parte inerente de ser uma artista, especialmente, quando se está em jogo aquilo que ama. 

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