“Deus que me livre na mira dos tiras, meu nego, não fico, não brinco, nem mosco
Medo, só vejo destroço do pobre que acorda com ódio
Longe do céu não pode ser réu, quem vem das ruas não joga fácil”. 

O lema nas quebradas, as zonas periféricas do Brasil é se manter vivo um dia após o outro. Sair de casa pra ir à escola, dar um rolê e, na volta, cruzar o caminho de uma viatura policial é uma rotina que, por vezes, termina em tragédia. São milhares de pessoas, invisíveis aos olhos da sociedade que se tornam meras estatísticas. “A Mãe”, de Cristiano Burlan, aborda de maneira árida, neorrealista e expressiva essa realidade. 

Na pele da personagem-título está uma das maiores intérpretes do mundo, ganhadora do Urso de Prata de Melhor Atriz por “A Hora da Estrela”, Marcélia Cartaxo. A atriz paraibana empresta doçura, inconformidade, dor e resiliência à vendedora ambulante Maria que vive com o filho adolescente, Valdo (Dustin Farias) em uma periferia de São Paulo. 

Coescrito pela dramaturga e roteirista Ana Carolina Marinho, o roteiro de “A Mãe” emerge dos lutos do cineasta para extrair mais um retrato contundente do que é a violência e o genocídio desenfreado praticado contra os menos favorecidos. Escrito durante a produção do documentário “Elegia de um Crime”, o longa também é a terceira parte da trilogia do luto de Cristiano Burlan. 

Com o dispositivo documental sendo emprestado para compor liricamente (e também de modo assertivo) o tom de denúncia do filme, uma peça de ficção que empresta da realidade uma situação decorrente de uma realidade muito próxima ao cineasta e documentarista, que inclusive já havia dedicado outro filme, “Mataram meu Irmão”, para exercício e exorcismo do tema. O corpo pobre e periférico que desaparece diariamente e nem sempre estampa o noticiário. As andanças da mãe ecoam a dimensão poética e social extraordinária dos filmes iniciais de Pasolini, Accattone e Mamma Roma. 

Real e visceral  

Mas não é só no discurso fílmico, neorrealista e cinema novista ou mesmo na performance arrebatadora de Marcélia Cartaxo que reside a força de “A Mãe”. No artigo “O Fluxo e o Quadro”, o professor da Universidade de Sorbonne/Paris 8, Youssef Ishaghpour, versa sobre o hiper-realismo presente em filmes da cineasta Chantal Akerman, articulando a análise ao redor dos aspectos formais dos filmes, seja a espacialidade, dramaturgia, enquadramentos e construção narrativa com figuras da subjetividade que os mesmos solidificariam e dariam a ver.  

Transpondo para essa análise de “A Mãe”, cabe considerar que cada plano elaborado por Burlan é atravessado por uma tensão entre certo formalismo e rigidez clássica e uma falta que atira para fora, que rompe e hibridiza as fronteiras entre os dispositivos em uma mediação entre forma, discurso e a realidade que busca imprimir na tela. 

A teoria ganha materialidade na construção de sentidos no filme, que pode se apresentar abstrata, mas nem por isso, menos consciente do que se busca atingir. Câmeras de vigilância antecipam o risco eminente, algo à espreita, a violência e a morte para quem vive em meio à guerra nas comunidades. Maria conversa com pessoas inventadas e reais, que compartilham suas histórias de luta e de luto. Burlan traduz em determinada cena, a incompletude daquela Mãe, que não obteve a confirmação da morte do filho, mas já sente o vazio do lado de dentro e a ausência que a cerca e a esmaga; ela estende a roupa no varal e Valdo não está lá para ajudar passando os pregadores de roupas. A câmera segue deslizando lateralmente, passando pelo rio que cerca a comunidade e que no fundo deve guardar o corpo desovado do menino. 

Premiado no Festival de Málaga e em Gramado, onde inclusive a performance de Marcélia foi consagrada com o Kikito de Melhor Atriz, Marcélia ainda contracena com o promissor Dustin e as grandes Tuna Dwek e Helena Ignez. Debora Maria Silva, do Movimento Mães de Maio, atua no filme – sim, pois, ela também é atriz de teatro – para respaldar não só Burlan como a própria realidade simultaneamente fabulosa e exposta ali. Porque a lição que o filme apresenta com verdade, precisão técnica e substância emocional é a de que é preciso parar de matar em especial a juventude. Que uma Mãe que perde seu filho ou filha para a milícia não desiste e segue na luta até o fim dos seus dias, carregando consigo um pouco de esperança no futuro.